TÁ LIGADO?
PALAVRAS EM
MOVIMENTO – políticas de insurreição
[...]a poesia não se serve de palavras.
(SARTRE, 2004, p.13)
Uma bola de capotão descia a rampa esburacada.
Antiga aquela bola, muito antiga. A força de alguns sonhos rolavam-na pela vida
afora. Não fosse a motivação do menino, não lhe haveria aplicação. Mas ele não
sonhava. O menino nascera no agora das incompletudes e apenas brincava de ser
menino. Manter a bola em movimento custava-lhe o suor do rosto e o calor nas
pernas. Corria descabelado atrás da esfera recheada por uma bexiga de boi.
No adiantado da hora,
ouviu-se um trino maternal:
_
Zéeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee!
_
Zéeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee!
_
Zéeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee! Seu muleque da peste! Volta aqui!
A bola de capotão mantinha a velocidade do vento
em final de tarde. Os buracos arregaçados da rampa não amorteciam os pés
descalços do menino: mordiscavam a pele jovem sem fazer cerimônia. Nem um ai!, nem um ui!, nem outro sinal qualquer. O menino perseguia a bola de couro
com os olhos focados na sombra arredondada que mal cabia no ângulo de sua
visão. Nascera prematuro: complicações no parto, desnutrição...
_ Zé! Vem agora!
No agora de Zé a bola
descia interminavelmente a rota ladeira. Nenhuma voz chegava-lhe ao espaço
contínuo: [...] o homem que fala está além das palavras, perto do objeto [...]
(SARTRE, 2004, p. 13). A bola descia, descia, descia.
_ Zéeeeeeeeeeeee!
Ao colo de Zé chegava o
friozinho do vento. E era só. Nenhuma palavra jamais dissera ou confirmara
ouvir. “A emoção se tornou coisa [...].” (SARTRE,2004, p.18). Não tinha letras,
não tinha sons, apenas a bola tomara para si ou tomara-o ela, tanto fazia.
A voz da mãe perdia-se
no eco dos tempos. Zé desconhecia-se diante dela e dos outros mais. Um menino
tão franzino, tão bom de se fazer dormir, tão certo para lidar: nem um ai!, nem um ui! Nem...
_ Ô psora! Não gostei desta história. Não
tem história aconteceno...
_ ... é a história do
Zé!
_ Ah! Nem!
_ Esta história está
sendo contada em prosa, mas com uma linguagem poét...
_ Nheco-nheco!
_ Hum? Não conheço esse
sentido...
_ Não é sentido, psora! É jeito de ser...entendeu?
_ Você poderia
explicar?
_ Essas coisas de
palavras estranha... mi-mi-mi! Tá
ligado?
_ Ligada eu estou, Zé!
Mas eu trouxe o texto para nos ensinar a... a...
_ ... a ser fresco?
_ Fresco? O vento está
fresco... é final de tarde e o menino corre atrás da...
_ ... da bola do Capitão!
_Zé!?
No final de tarde, o
vento subia a esburacada ladeira da escola. Atrás dele, uma classe inteira
atendia ao sinal de retirada. Na porta da sala, uma professora olhava o
movimento em suspirosa saudade: ah! pensar!
O que fizeram de ti?
_ Ô, psora? A bola do capitão era mesmo de couro curtido? Eu só conheço bolas de
polímeros, com revestimento de poliuretano, câmara de borracha butílica, que
são mais leves e duráveis. Tá ligado?
“[...] a prosa mais seca encerra
sempre um pouco de poesia.” (SARTRE,2004, p.32)
Referências:
SARTRE, Jean-Paul Sartre. Que é Literatura? 3ª edição. São Paulo:
Editora Ática, 2004.
Ivane
Laurete Perotti
http://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/palavras-em-movimento-politicas-de-insurreicao/