PARTE I
DIDÁTICA DA
VIOLÊNCIA – parte I
- páginas de um aprendizado por modelagem não
espontânea -
Saber melhor significa
precisamente ir além do senso comum a fim de começar a descobrir a razão de ser
dos fatos [...] começando de onde as pessoas estão, ir com elas além desses
níveis de conhecimento [...]. Paulo Freire
As cores do vento não
lhe foram apresentadas. Desconhecia sentir as tardes agitadas na escola de
ensino básico. Deslocava-se até o portão de lata, aguardava para entrar e
permanecia quieta em sua ilha vazia de praias azuladas e altos coqueirais. A
pequena cabeça pedia sobre o peito parecendo fitar o fundo sem fundo do piso
quadriculado. As pequenas mãos grudavam-se ao caderno simples e de capa
amassada. Mas a verdadeira dor chegava quando a professora, em sua rotina de
lições, pedia:
_ Escreve, Tina.
Escreve ...
O cabelo crespo e preto
como as noites órfãs da lua servia-lhe de escudo e esconderijo. Guardar o rosto
e prender os olhos por detrás daquela nuvem espessa garantia-lhe sobrevida.
Matriculada no quarto ano do ensino fundamental I, chegara à escola fazia
pouco. Fora mandada pelos pais para viver com uma tia que se mudara para a
capital em busca de trabalho. Conhecia o caminho da escola contando os buracos
nas calçadas. Não tinha coragem de olhar para as árvores e menos ainda para as
pessoas que passavam. Dada por tímida, mergulhava no vão mais profundo dos
abismos humanos: a solidão infantil.
_ Ela é burra!
_ Ô, menina da roça...
você é retardada? Pobretona!
_ É mongo...
Silenciados pela chegada
de algum adulto, os colegas que também desconheciam as cores do vento escondiam
as frases carregadas de espontânea maldade. Crianças podem ser más? Seria uma
questão simples, não fossem os contextos apinhados de incoerências, os adultos
omissos, a ausência de uma “educação de vida para a vida”, as atipias
neuropsiquiátricas, as cargas genéticas, os projetos de negação à vida, os investimentos
em armas, guerras, genocídios e doenças fabricadas. Certamente a questão é
complexa, mas existem momentos que concentram em si mesmos uma nesga de
possibilidade. Pode ser uma nesga minúscula, mas serve, sem romantismo ou
pieguice, às vezes, para abrir uma porta já sem taramelas.
_ Tina...pepina! Tina
catinguenta!
_ Tina... negrinha!
Pobrinha, azedinha...
Um só caderno saía da
mochila gasta que Tina carregava à frente do corpo. Ninguém via que era apenas
um caderno e que nenhuma letra fora “desenhada” nele. Pelo mutismo da menina,
pela repetição dos dias insalubres e sem reedição, a insistência dos
professores dera meia-volta e batera na esquina dos estigmas e das
especulações. Faltava um laudo. Criança com laudo é criança com identidade
determinada: fragmentos de uma reta sem
ponto.
_ Ela não faz contato
visual. É TEA.
_ É tímida! Ou,
depressiva!
_ Nada disso! Não foi
alfabetizada.
Quase um semestre se
passara sem que a menina desse sinal de socialização. Quase um semestre se
passava com as frases por modelagem discutível rondando os cabelos crespos de
Tina: Tina, caprina! Tina, equina!
Tina... menina! Uma menina fora registrada na margem social dos sujeitos
escolares em crescimento. Sujeitos à
deriva de conceitos que parecem não se extinguir: a segregação é o exílio das
flores.
Contavam as calçadas
que os pés da menina tinham bolhas: bolhas de falas oclusas, profundas bolhas
crespas de sonhos não sonhados, bolhas de silêncio pesado, tortuoso silêncio
que prende alguns à âncora da civilidade padecente. Poderia ser ela apenas mais
uma menina que chegava em busca de possibilidades. Poderia ser ela apenas uma
menina quieta, tímida, com dificuldades de aprendizagem ou com transtornos
cognitivos. Poderia, uma vez que nestes tempos sombrios usamos a mesma régua
para carimbar as crianças em métrica cega. Os sintomas chegavam antes de Tina
que desconhecia as cores do vento, o gosto das letras enfileiradas, o sabor da escrita
suave, o som da palavra livre... simpática, talvez! Existem palavras
simpáticas. Existem palavras ausentes, mas não existem palavras sem
consequências. As palavras têm selo de fato, de coisa acontecida no ainda não
havido. As palavras têm chaves que trancam e abrem sentimentos, rondam emoções,
cavam poços para salvar ou para morrer.
Continua...
Ivane
Laurete Perotti
Referência
FREIRE,
Paulo, HORTON, Males. O caminho se faz
caminhando: conversas sobre educação e mudança social. 4ª ed.
Petrópolis-RJ: Vozes, 2003, p. 159.
https://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/didatica-da-violencia-parte-i/