A GENTE SE ESCREVE
- talhos de uma
escrita -
“A existência, porque humana, não
pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas
de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo.” Paulo Freire
No marco da porta, o
entalhe de uma escrita anônima tornara-se invisível. Seria mais um ato de
vandalismo – segundo as leis de proteção ao patrimônio público – não fosse a
insistência de um aluno do terceiro ano, fundamental I. À altura de seus
cabelos crescentes, a palavra tocava-lhe a coroa crespa. Os talhos profundos
atraíam-no. Visitava a cicatriz na porta da sala de aula com dedos clínicos: o
/n/ parecia-lhe um navio que era diariamente engolido por águas assustadoras; o
/e/ lembrava-lhe uma bola esfarrapada, serrada ao meio, durante um jogo sem fim;
o /g/ confundia-lhe: imagens animadas por detrás do entalhe provocavam-lhe
calafrios. Acreditava enxergar grandes girafas e seus pescoços descomunais, com
manchas ainda maiores que não sabia se iam do amarelo para o marrom ou do
marrom para o amarelo. As girafas não estavam sozinhas. Outros animais
dependuravam-se na única perna torta da letra /g/. Desconhecia-lhes o nome. E
havia sons: sons com cheiro de lugar que a gente não conhece e, ainda assim, sente
medo ou saudade de estar lá. Essa mistura de sensações atravessava-lhe a pele,
e por muitas vezes, desejara chorar por motivos ausentes.
Contudo, era na letra
/r/ que ele mais se fixava. As mãos acariciavam o traçado como se dele pudessem
extrair o intocável. O narigão pendente do /r/ espichava-se criando braços,
muitos braços, quase alcançando o único pé da letra. O /r/ tinha um corpo que
se espichava sozinho e depois descia como um triste ponto de interrogação
diante do espelho. Queria quebrar o espelho. Endireitar o /r/: era um erro!
As linhas do /r/
derretiam-se na madeira da porta e diziam coisas inauditas. O pequeno estudante
temia ser engolido por elas. Seus dedos ficavam presos às ranhuras que sempre e
sempre demoravam para soltá-los sobre o /o/. Era um tranco! Do /r/ para o /o/.
Não gostava daquela letra. Parecia-lhe tão fechada, tão certeira como se um
alvo estivesse à mira do desconhecido. Desconfiava dela. Também pensava que a
palavra não deveria terminar ali, como um caroço vazio, esquecido no tempo da
porta. Não poderia ser o fim. Nem poderia ser o começo. Queria saber quem a
escrevera. Como a escrevera ali, tão grande e profunda. E o que a pessoa queria
dizer? Só uma palavra.
A palavra escrita à ponta
de um objeto qualquer atingia-lhe os olhos, o peito, a memória em construção.
_ Fulano... vamos
entrar?
O professor aguardava
para começar a aula.
_ Professor? Posso
sair?
_ Você nem entrou...
precisa de alguma coisa?
_ Não sei. Eu
preciso... preciso escrever aquela palavra ali.
A palavra saiu, por
alguns instantes, da porta para o quadro da sala. Do quadro para os cadernos.
Dos cadernos para as conversas. Das conversas para várias histórias.
Por uma aula, o
professor guardou o planejamento do dia. Capacitado pelas resistências da vida
e sensível às demandas do aluno, construiu no coletivo uma aula de identidades:
_ A gente se escreve
quando escreve.
_ Só quando escreve,
professor?
A escrita foi o
pretexto. A palavra era a ordem: madeira entalhada pela vida sentida e não
sentida, atravessada por cargas e descargas de tensões, memórias e construções.
A língua, madeira verde, abriu-se floresta de sequoias: professor e alunos
instalaram-se para existir. Existir,
humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua
vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo
pronunciar. (FREIRE, 1985, p.92).
No marco da porta da
sala de aula, os talhos da anônima escrita reverberaram em diálogos: uma das
resultantes da alfabetização social.
_ Profe... a gente pode
se escrever de novo?
E lá ia o professor
levando trabalho para casa. No trânsito de sua inscrição professoral, escrevia-se o homem em pulsante devir.
Professor e alunos saíam do anonimato pelo mundo dos letramentos: obra das linguagens com entalhes devidamente registrados.
Ivane
Laurete Perotti
Referências
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 14ª
edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 92.