EMBARCAÇÃO MORTÍFERA
- nos tempos da
ignorância distribuída -
“A ciência contemporânea é feita
da pesquisa dos fatos verdadeiros e da síntese das leis verídicas. As leis
verídicas da ciência têm uma fecundidade de verdades, elas prolongam as
verdades de fato por verdades de direito.” (Gaston Bachelard)
_ Mãe, o que é inhorância?
_ Ig...ignorância,
filho.
_ Ah! E o que é?
_ Hum...é mais ou menos
como chamamos alguém que não conhece alguma coisa, sabe?
_ Não sei! Eu sou inhorante?
_
Filho...ig...ignorante! Não! Você é uma criança e está evoluindo, crescendo,
conhecendo. Você está aprendendo. Entende?
_ Então, a inho...ignhorância não mata, né?
_ Pois, infelizmente,
pode matar, sim.
_ Como?
_ Por exemplo: se você
tiver dois cogumelos na mão e não souber qual dos dois é o venenoso...
_ Morre!
_ Ou deixa de comer,
também pode, não é?
_ Mas se eu estiver com
fome.
_ Você procura um
especialista em cogumelos.
_ No meio do mato, mãe?
_ Ah! Você estava no
meio do mato?
_ Não...eu estou preso,
né?
_ Não, meu filho. Nós
estamos isolados.
_ Não estou
entendendo... então o...o nosso... não conhece os cogumelos?
_ Ah! Filho, aí são
outras coisas, outras... para além dos cogumelos.
_ Mas, mãe... então,
nós estamos presos por causa dos cogumelos.
_ Isolados! E não são cogumelos.
Um vírus está...
_ Já sei disso tudo! Tô
bem cansado de tanta repetição sobre o caronavírus.
_ Filho! O que está
acontecendo com você? É falta da escola, é? Está trocando as palavras como se
fosse dono delas.
_ E palavras têm dono?
Um suspiro de mãe acompanhou a revirada dos olhos. Estava difícil
lidar com o medo, com as dúvidas e com a angústia. Não queria que a preocupação
chegasse ao filho. Ele ainda estava na fase de pensar que era apenas um vírus,
que água e sabão livraram as mãos do perigo, que a...
_ Mãe! O que é ciência?
_ Hummmm.... melhor a
gente pesquisar sobre isso. Vamos.
A pesquisa on-line deu
resultado. Leitura feita, exemplificações na palma da mão. Um descanso para as
próprias inquietudes.
_ Mãe? Fiquei pelhor...
_ Ai, minhas sete almas!
Pi-or, filho. O que você tem? Tosse? Febre?
_ Mãe...eu tenho uma
coisa...uma coisa muito ruim.
_ Onde, amor da mãe.
Onde?
_ Aqui, no peito.
_ Você consegue
respirar, está com fraqueza? O que foi, minha nossa?
_ Mãe, eu estou pelhor porque eu entendi.
_ Entendeu o quê? Como
assim? É coração?
_ Não, mãe. Eu entendi
a inhorância, os cogumelos e o caronavirus.
_ Filho...
Diante da mãe em
choque, o menino debulhou dizeres que tardavam na boca dos adultos. Não se
demorou no desenho de um navio com diversas repartições. Em cada uma delas ele
pintou corpos caídos ao chão. Seus riscos de cabeça e palitinhos tomaram a área do desenho. Onde, para ele
deveria estar o leme, desenhou cogumelos. À direita da embarcação, escreveu uma
palavra em tinta vermelha: INHORÂNCIA. E no céu, entre nuvens quase apagadas,
escreveu CIÊNCIA.
_ Filho, você me
assusta. Mas, tá. Estou entendendo. Nesse seu ...seu mapa das coisas, onde está
o...
_ Ô! Mãe... você quer
que eu desenhe o caronavírus? Você
não entendeu nada.
Ivane Laurete Perotti
Referência
BACHELARD, Gaston. O objeto da
história das ciências. Revista Tempo
Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 28, p. 7-21, jan./mar. 1972, p. 45-46.