FLIPOÇOS... texto ANTOLOGIA LITERARTE
GEVAUDE PAAIE
CAMINHOS
DOBRADOS
Faz um tempo que espero. A esquina
parece com outra esquina qualquer, mas nega-me o caminho, engole as marcas do
que testemunhou.
Entorpecido, olho mais uma vez para as
pedras molhadas. A chuva ameaça voltar. Uma poça mais à frente atrai meus
olhos. Ilhada, a água não tem para onde escoar. Poça barrenta, mistura de terra
encharcada e de restos que contam o dia sangrento... op bloedige! Bloedige! Op bloedige!
Um vento frio dobra a esquina... koue wind! Frio, muito frio para o
período do ano. Poderia ser ela, sorrateira, braços esticados para carregar-me
dali.
Queria ser levado pelas mãos de
passagem. Dood... chegara a minha
hora de voltar para casa. Morrer não era mais desesperador. Agora, era o que eu
tinha.
Nuvens grossas chamavam meus olhos.
Passavam através delas histórias sem trégua, mascaradas por um tempo de falso
silêncio. Olhando-as da esquina onde eu ficara conseguia ver com mais clareza o
que me levara até ali. Eu queria um lugar embaixo das nuvens. Queria acreditar
na permissão para viver em paz.
Onde estaria ela? Não ouvia mais do
que os gemidos daqueles que espalhados pelas ruas, também esperavam.
Esperar era a sina de todos nós. A
história não nos ensinara a esperar mais. O mundo precisava saber que o sangue
derramado ficaria a empapar as ruas, as esquinas, as calçadas sem espaço.
Rio de sangue... rivier van bloed... um rio de sangue corria fazendo novo leito
por entre as esquinas da cidade. Rio de fogo a queimar os corpos destroçados
pela esperança vazia. Fogo! Fogo... a chuva não apagava o vuur que lambia os corpos ainda em pé. O fogo enfrentava a chuva e
se agarrava àqueles que ardiam já sem voz.
Ela demorava a dobrar a esquina.
O mês de maio corria para fora do tempo que eu conhecia.
Medo. Terror... onde tudo
começara?
O vento frio parecia chegar
dizendo o que eu não entendia. Queria que ela viesse logo para me levar de
volta.
Medo... vrees...vrees...
Meus
pés alcançam a poça barrenta. Meus olhos atravessam as nuvens tentando olhar
para além do firmamento.
Penso ver de lá de cima.
Acredito que meus amigos ainda estão procurando um lugar para esconderem-se da
violência que chegou sorrateira e explodiu feito pomp. Sim, eram bombas caseiras que se ouvia ao longo da esquina.
Bombas recheadas de ódio, de preconceito, de outros medos não explicados.
Olho para a poça formada pela
chuva fria e imagino-me seks... lief to hê...amando, amando minha mulher na cama feita com restos de espuma
seca.
Onde estaria a minha amada esposa?
Onde estaria a minha geliefde vrou?
Quero voltar para casa. Quero
dizer para ela que eu a amo... que eu a amo... ek is lief vir haar! EK IS
LIEF VIR HAAR!
Ela não me ouve. Não pode me
ouvir. Deve estar procurando-me por entre os que já partiram. Deve chorar
aquele choro manso de menina que sente medo do que está por vir. Ela certamente
está com medo.
A chuva desenha seu rosto
jovem sorrindo para mim. Eu sou ela... eu sou ela... ek is haar!
Minha amada esposa! My geliefde vrou!
Quero vê-la uma vez mais.
Quero que beije meus lábios partidos e cure a dor que me arrasta por debaixo
das nuvens ameaçadoras.
Sinto frio. Não verei o final
de maio nem saberei se deixei uma semente.
Meus lábios choram quando
acredito cantar a canção que aprendi com minha mãe. My ma... my ma...
Estou só. Sinto frio.
Escuto a esquina dobrando-se
em outros caminhos. É tarde para todos os que ficaram. Não poderei dizer adeus
a quem mais queria ver agora.
Ela não vem. Posso ser
engolido pela poça que permanece ilhada... parada! A poça... die poel... a poça d'água parece
puxar-me para dentro dela. Tão pequena, tão profunda, tão parada.
Viro o que ainda penso ser
minha cabeça e acredito ver o final da esquina. Ouço mais do que vejo. Ouço
mais do que desejo. Entendo pouco.
Ela demora. Quero ser levado
pelos braços da morte antes que outra dor me alcance.
Estou aqui, esperando que a
chuva desça mais forte, mais forte, mais forte!
Quero chorar. Não sei onde
se esconderam as minhas lágrimas. Meus olhos abrem-se assustados pela estranha
paz que envolve meus sentidos.
Estou deitado em uma
esquina, tão parecida com outras esquinas, tão longe e tão perto de tudo o que
fui e não poderei ser.
Outra vez as nuvens desenham seu
rosto... my geliefde vrou!
Cante para ela vir, cante para ela
carregar-me em seus longos braços. As mulheres sabem cantar, e sabem rezar, e
sabem chorar. A morte escuta o canto das mulheres lamentando os que partem em
dor. É com o lamento que as mulheres desafiam o tempo, tempo que eu não tenho
mais.
Quero ouvir a sua voz
cantando a minha vida.
Estou com frio.
As nuvens descem mais para
aumentar o peso sobre os que tombam.
Outras esquinas lembram a
esquina em que estou.
Dobram-se caminhos por
entre as ruas cheias de pés. Há pés ao longe, posso ouvir. Não conheço o pisar
da morte, apenas reconheço o seu cheiro vazio e amargo.
Alguém dobra a esquina em
minha direção!
Será você, minha amada...
será você?
Longos braços abrem o véu
que agora cobre minha alma.
Estou indo.
Vejo a esquina ficar para
trás.
Cante por mim, meu amor. O
mês de maio chega ao fim.
Dobram-se os caminhos
molhados pela dor.
Cante por mim!
* Este texto faz parte da Antologia a ser lançada pela LITERARTE, na FLIPOÇOS - Poços de Caldas, MG
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