PEDAGOGIA
FATIAS DE UMA
LOUCURA
- ações da
educação saudável –
Se queres ser cego, sê-lo...
se podes olhar,
vê;
se podes ver,
repara.
(José Saramago)
Em torno do ônibus os alunos
aguardavam o sinal. Aqueles adolescentes reunidos na manhã ainda fria esperavam
por um movimento. Assim que lhes dessem a ordem, partiriam.
_ Fulano!
_ Beltrano!
_ Sicrano!
Não demorou. Dos nomes
não havia dúvida: transitavam nos corredores linguísticos sem o pavio das
fronteiras quebradiças. Sentados, os alunos deram voz à motivação:
_ Profs...profs... isso da gente istudá
história indo visitá o...o...
_ Nanicômio!
_... namicônio...
_ Neh! Ma...ma ...manicômio,
meu!
_ Não é o manicômio o
nosso destino, fulano!
_ Não! Eu sei. É ...o
...o...
_ ...o nosocômio!
_ Não! É o hospício!
_ Lazareto!
_ Sanatório!
As palavras subiam e
desciam a cabeceira dos bancos coloridos. Entre risos e chistes sobre o destino
da viagem, os alunos apoderavam-se das palavras para colar sentidos outros aos
já anunciados.
_ Meu... eu conheci um
cara da cabeça virada.
_ Para trás?
_ Ãaa! Para a frente, engraçadinho.
_ Fala aí: qual era a do cara?
_ Pirado!
_ E...?
_ Ah, sei lá! Vivia
sendo levado para o... o...
_ O hospital
psiquiátrico! Não gosto de piadas sobre esse assunto...
Algumas vozes
calaram-se diante do apelo velado. Outras, mais do que depressa, recorreram ao
professor de história:
_ Ô, psor... a gente não tá rindo dos loco! É que... isso de perdê a cabeça é meio pesado, entendeu?
_ Certamente!
_ Então...
_ O assunto é sério,
com certeza!
_ E como é que a gente vai
istudá história num museu de ...
de...
_ Em um museu de
fotografias sobre a loucura.
_ Isso!
_ A história pode ser
contada a partir de vários pontos de vista. Então...
_ Para, professor! Não
fale mais nada!
_ Eu...
_ Não fale! A gente
quer você na história, entendeu? Não dá mais para trocar de professor.
_ Mas...
_ Não fale, profs! Não fale nada... a gente nunca
sabe quem tá ouvino. Tendeu?
Do não silêncio do
professor de história teve início uma lição dentro de outra lição. O ônibus,
repentinamente, encolheu de tamanho e toda a loucura do mundo parou para
ouvi-lo. Calma e pausadamente, o professor disse de lugares, gentes, espaços,
territórios e estratégias de construção de uma sociedade.
_ Então...
_ Continua, psor. Continua! Isso daí é ... é...! Di rocha! Nem celular derruba!
Referência:
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. 6ª edição. São
Paulo: Editora Companhia das Letras, 1995.
Ivane Laurete Perotti
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