PONTES
O INDISSOCIÁVEL AFETO NA ESCOLA DO NÃO
AUTORITARISMO
- uma ponte de
emoções liga a vida intelectiva e a vida afetiva –
Terminava
a primeira parte de meu trabalho em sala de aula naquele dia. Preparava-me para
repensar as ações e recolher-me ao silêncio necessário. Então, anunciou-se um
presente embrulhado no coletivo de várias mãos: substituir um colega em uma
turma até então desconhecida.
Vesti-me
de professor e caminhei para a sala indicada. Despreparado para a enxurrada de
alegrias, deixei vazar as lágrimas do contentamento. Olhos de puro amor
sentavam-se à moda alunos do 9º ano: olhos vivos, íntegros, saudáveis,
verdadeiros, expectantes. Os contornos da sala coroavam-se pela estética da
diversidade: inclusão na inclusão. Meninos e meninas estampavam um olhar do
qual eu sentia saudade fazia um certo tempo: olhar de bolinhas de gude coloridas pelo crescimento, pontilhadas de
inteligência viva. E esses olhares não se intimidaram em dançar à minha frente.
Dançaram a melodia da abundante curiosidade enquanto comandavam mãos e falas em
harmonia crescente. Falas vibrantes absorveram-me. Entre a mágica leveza e o
racional estruturado, desfazia-se o nó do intelectivo: aprendizagem em rede.
Fora “pescado” pela aguda vontade de aprender daquela turma que me ensinava
sorrindo, e abraçando, e entregando a confiança que eu acreditava perdida atrás
do sol secular.
901.
Era a turma até então desconhecida para mim, no universo da escola pública onde
aprendo a ser professor. 9-0-1! 1-0-9! 1-9-0! Ah! Mecanismos de contar e de
compor! Por quantas ondas fônicas escondia-se o heroísmo desta turma?
Na
traquinagem lógica dos signos linguístico-matemáticos desejei imitar Saussure,
o Ferdinand* da Semiologia (1857-1913) e brincar de anagramas na inversão dos
números naturais. Desejei ser poeta para versar a experiência rica; desejei
cortar a métrica das rimas para dizer aos alunos “emprestados” por uma aula,
uma única aula... o quanto tornaram-se insubstituíveis. Cogitei falar-lhes que
haviam restaurado em mim a valência de meu lugar tão cheio de incertezas; mostrar-lhes
o mapa das esperanças avançando no conjunto das emoções. Planejei dizer-lhes
que não só de capacitação vive o professor. Que toda a emoção (origem
biológica) sentida por mim decorreu da afetividade (de origem psicológica – mas
não apenas!) lançada a mãos cheias e olhares de bolinhas de gude coloridas. Grandes faíscas entranharam-se pelas
vias da cognição e iluminaram-me as paredes neuronais; acenderam-me as trilhas
sanguíneas e os batimentos cárdicos. Quero mais de tudo isso!
Não
devo retornar à turma 901, mas levarei a lição de puro amor para espalhar
aprendizagens em outras turmas. Carregarei a emoção com baterias inesgotáveis
para que a minha memória se alimente dela todos dias, ao vestir-me professor e
ao tornar-me gente que faz.
Esta
é uma declaração de amor real à educação real que acontece na escola
pública. À turma 901, um anagrama de
afeto multiplicado por todos os possíveis rearranjos dos números naturais e positivos.
Presente aceito! Presente feito!
*Ferdinand
de Saussure é considerado o “pai” da Linguística enquanto ciência
autônoma. Mas dizer dele, é dizer pouco.
Ivane
Laurete Perotti
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