SONO


EM CENA: O SONO 
- por uma infância na escola e uma escola na infância-


Por qualquer ângulo que se espreitasse a sala de aula via-se alunos em estado de pleno adormecimento. Dormiam como se não houvesse amanhã.
_ Que amanhã?
Apagados, distanciavam-se cada vez mais da lida do estudo. Dormiam encarreirados: cadeiras no lugar, cabeça sobre a mesa, mochila de travesseiro. E não lhes faltava a profundidade na cena de recorrência diária. Dormiam.
_ Fulano!
_ Fulano!
_ Se quer dormir, vá para casa!
_ Fulano! Acorde para a vida!
_ Fulano...
A voz do interessado no ato de acordamento não chegava ao labirinto de suspensão temporária das atividades.
_ Temporária? Ele dorme todos os dias, mano!
_ Está perdendo conteúdo! Como irá crescer na vida?
_ Que vida?
Se alguns riam, riam pela certeza do sentido não dito. Se outros apoiavam, faziam-no pela decência de chamar para si o que também lhes achegava: que vida?
Para o professor, a força do dizer deslizava para longe da motivação. Uma sala em adoecido sono repetia-se pandêmica.
_ Pândega? Ah! Isso, não! Cansei de ouvir essa coisa aí... ninguém aqui é pan...pan... ninguém, não! Todos trabalham.
E foi então que, mesmo sabendo, o ouvidor tomou-se de consciência completa acerca do que via e ouvia:
_ Todos trabalham? Quantos anos vocês têm?
_ Dez...
_ Nove...
_ Onze... trabalho desde os nove!
Operários deitavam a cabeça no colo da servidão. Estudar? Todos queriam. Acordar? “Isso” seria para poucos. Poucos tinham acesso ao despertar em um dia pré-adolescente, ainda infantil...não adulto.
_ O trabalho não mata.
_ ...
_ Meu pai também começou cedo.
_ O meu... mais cedo ainda. Desde os seis, lá na roça.
_ Graças ... eu tenho um trabalho.
_ O trabalho deixa a gente mais responsável.
_ Eu quero ficar rico... comprar uma casa para a minha mãe, entendeu?
O homem alto e bem formado que se colocava à frente dos alunos perdeu centímetros. Sua coluna desceu junto com as pálpebras. Os olhos voltaram-se para dentro e, então perguntou:
_ O que vocês gostariam de aprender?
Acordaram alguns, pois o vozerio tomou espaços: desceu as mesas, subiu as janelas, abriu as cartilhas de afogamento, fez nuvem de passarinho, esfregou tanto que virou aconchego.
_ Rapaiz! Eu nunca pensei que eu ia aprendê sobre as coisa da vida em uma aula de matemáticas.
_ Tem mais...
_ Mais?
Muitos não conseguiram acordar a tempo e perderam os cálculos sobre a razão quadrada da violência multiplicada ao ângulo obtuso da equação: infância e mão de obra. Muitos mantiveram o seu trabalho e testemunham dar conta das contas: somar e dividir? Ora! Isso é simples: eu + eu, dá nós; eles + eles, dá eles! Entendeu?
Na escola sem violência, aprender a somar equivale a compreender sonhos e vontades, espaços e necessidades. Aprender a dividir, implica perceber as sombras da cena, escondidas, camufladas sob o peso do sono de todos aqueles que estão demasiadamente...acordados!

Ivane Laurete Perotti

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