APENAS UMA NOTA
APENAS UMA NOTA PELA ABOLIÇÃO DOS DIAS MARCADOS DE ANTEMÃO
A tentativa de me convencer de que o dia nasceu com um rótulo ofusca a
beleza do dia. Rótulos cegam-me e perturbam , criam barulhos e figuras
cristalizadas na onda do comum e embrulham meu estomago onde, possivelmente a
minha consciência fez morada.
Se apenas hoje fosse um dia dos
pais, a dívida no calendário atrasaria
o sentir diário, a falta diária, o cansaço diário, o carinho diário e aquela
dedicação que beira o sacrifício silencioso de cada pai, mãe, pai-mãe, mãe-pai
que atuam em papeis não marcados, mas decididos e vivenciados. Essas "coisas triviais" de pais vivendo
dias comuns não cabem no calendário, cabem na vida sentida e impregnada com
todas as dificuldades e alegrias inerentes: acordes e dissabores, perdas e frustrações
acontecem diariamente. Serenamente, entre aqueles que têm ciência da prole
gerada, o calendário é tamanco manco: calça-se um pé para descalçar o outro.
Converge para a figura imputada do comercial que ninguém apresenta: um "presente" no dia dos pais e a
indiferença no resto do ano para compensar a atitude maquinal da cerimônia sem
poesia.
Pareço amarga? Não! Amargou-me uma cena que vi cedo, logo cedo, diante
do mercado inflado de pais e filhos apressados em comprar o almoço festivo. A
dois, a três, os carrinhos de compras abarrotavam-se e alguns até serviam de
"cart" para os pais mais
afoitos, ou felizes, ou desejosos de brincar, quebrar uma regra... sei lá!
Do lado de fora, algumas crianças eram impedidas de entrar. Óbvio: não
estavam ali para gerar lucro. Incomodavam: malcheirosas, expunham visivelmente os
restos de qualquer coisa que cheiraram durante a noite, o ranço do banho
ausente, a meleca escura que escorria sobre os lábios, o odor ácido da urina
seca na roupa suja. Sujas, remelentas e no fim ou começo de uma larica ( em qualquer acepção: FOME!FOME!FOME AGUDA). Larica de mais drogas, de alguma comida,
de... existiria larica de carinho? Talvez,
em conhecendo-o, sintam larica de
carinho, de pai, de mãe de casa, de escola, de respeito, de proteção. Em
conhecendo...
Fome aguda é fome em qualquer lugar e
circunstância. Mas essa fome que tem
devorado nossa consciência de GENTE está colocando a mesa para um banquete em
nome da não vida. E nem oferece guardanapos. De entrada, em bandeja de fina
prata, desfilam as decisões políticas em favor do umbigo de cada um ( cada um deles, umbigados pelo calor da corrupção à beira dos fogões burocráticos). O antepasto, servido a frio , brilha com
todos os pecados contra uma nação que capenga atrás do calendário das novas
eleições. De novo? É o calendário paterno transfigurado em nova alegoria:
precisa-se de um GRANDE PAI ( MÃE) para comandar uma GRANDE NAÇÃO! Sim...
faz-se necessário! Mas a prole desvalida e remelenta ao redor dos comensais convidados
a dedo desconhecem o poder do umbigo, a não ser quando precisam arranhá-lo para
retirar um carrapato, muito comum entre moradores de lugar qualquer. Então,
qual a larica mais urgente entre as
crianças sujas que continuam em frente ao mercado? Sinto-me envergonhada e
duramente responsável pela mão de meu filho que aperta a minha. Meu filho e
minha filha rodeiam-me no dia dos pais, como o fazem desde sempre, todos os
dias, enquanto tento ser um pai-mãe a contento, uma mãe-pai inteira quando não
rasgo minha própria vontade de gritar que é difícil, é difícil, é difícil. Mas
o par de mãos entre as minhas é um presente diário e torna mais fácil quando
preciso chorar e dizer que errei, que tentarei melhorar, que estamos juntos, com uma
saudável certeza na alternância dos
papéis que me cabem: pai-mãe, mãe pai, como tantos outros por aí.
Mas... e aquelas crianças? Disseram para elas que hoje é dia dos pais,
Deveria existir uma lei contra a mentira e o assalto emocional, contra os
conceitos mascarados em lucros , contra o medo dos abraços soltos, contra a
larica de carinho.
Deveríamos parar de olhar para o lado e enfrentar o paredão que cresce a
olhos vistos entre uns e outros, a desigualdade é a maior arma para colocar uma
nação apenas no calendário dos insucessos.
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