MISÉRIA ATÁVICA
FRONTEIRAS
DA INDIFERENÇA
" A distância não gera afastamento;
apenas a indiferença
abre espaço para as fronteiras do esquecimento."
Ivane Perotti
Entre
as gotas da cortina de chuva sobressaíam
aqueles olhos: secos. Olhos de olhar para lugar nenhum. Olhos que desconheciam
o calor da esperança e o motivo da redenção. A pele ao redor deles cobria-se
com a capa da realidade crua como se muros fossem construídos na argamassa de
almas esquecidas. Densos muros, altos muros, confrontavam existências tão
distantes quanto o olhar que via e deixava de ver. Vários mundos debatiam-se no
curto espaço obliterado pela
indiferença. Vários mundos chocavam-se violentamente no vácuo criado pela
ausência de um significado comum: ver
é uma questão de escolha. Escolher é um processo que exige consciência. Consciência
é um caminho fisiologicamente demarcado pelas possibilidades de acesso ao que funda
o conhecimento. Conhecer é uma questão de vontade política e aqueles olhos,
dobrados pela crueza da chuva ininterrupta, desconheciam o caminho de casa.
Pelas calçadas
molhadas assentavam-se ao trono da tristeza outros olhos, pares de olhos, tão
secos quanto o primeiro, tão nus quanto qualquer imagem desfocada, tão duros e
distantes quanto qualquer ilusão de humanidade. Mãos desfalecidas quedavam-se
ao lado dos corpos destituídos de lugar: uma social individualidade premeditada nos padrões da desigualdade.
Torpe era a dança da época regida pela consciência
fria e calculada a ponta de falsos valores, roubados penhores. Vil era o
destino inexistente que jogava com vidas colocadas à margem de qualquer limite.
Assenhorados pelas mazelas ditadas, sujeitados ao dissabor das anestesias
sociais, olhos sem brilho cruzam a ponte entre o homem e o homem. Sombras
de um nascimento julgado a termo, reduzida sentença para os olhos vazios,
secos, destituídos de sentidos outros. Sem sentidos, o homem desconstrói a
rotina da criação, mata os embriões de sementes jogadas em terreno fértil e
mitifica o ávido espectro da dominação. Querelas previstas e antecipadas na
agenda das vaidades: ao homem destina-se o poder de ser ... ser... ser...
A vida solidifica a morte em vida
na vida daqueles impedidos de
escolher. E escolher pode ser a única salvação no cadafalso maldito das ruas tombadas
pelo mérito das desigualdades. Misericórdia
para aqueles que enxergam e não veem, sentem e não reagem, testemunham e não falam,
sabem e não escolhem, podem fazer e nada fazem. A história cobra o preço da
consciência vilipendiada. Labirintos morais proliferam minotauros e não se fazem mais Teseus
como no antigo mito.
Olhos esvaziados furam o mundo do homem indiferente e desbancam
conceitos de civilidade; assédio da modernosa
ambiguidade: ter e ser dominam o mesmo campo semântico.
Quando as desigualdades sociais deixarão de cambiar-se em moedas de poder e
significação? Quando a humanidade
alçar-se-á ao lugar de faculdade imanente?
Essencial à vida é o respeito à vida, e ao
homem, singular por natureza, as diferenças são o prelúdio para o império da
igualdade: de direitos, de educação, de acesso às escolhas, de informação, de representação.
E este seria apenas um começo para que os olhos locados às ruas da indiferença não se
perdessem entre os muros da miséria atávica.
" Pelas ruas
descalças perambulam almas destituídas do
homem
social: miséria conduzida pela vontade política."
Ivane Perotti
Texto: Ivane Laurete Perotti