TOMBOS E TOMBOS
A
AUTOMAÇÃO DOS SENTIDOS
-
nada que nos seja oculto permanece inalterado -
"Fechei
os olhos e pedi um favor ao vento: Leve tudo que for desnecessário. Ando
cansada de bagagens pesadas... Daqui para frente levo apenas o que couber no
bolso e no coração. "
Cora
Coralina
Justificado o primeiro tombo, a ribanceira
convocou a pedra:
_ O que faz em lugar tão inapropriado?
_ Não faço! Aguardo!
_ Aguarda? Mas esta é a minha função. Desdobre-se em outro caminho que
por aqui não há lugar para tantos desfalques.
_ Assoma-te
em curva, infeliz ribanceira. Quanto mais pedras encontrarem em tuas costas,
maior a chance de continuar onde está.
_ Não compreendo...
_ Já ouviu dizer que os homens
preferem os caminhos mais árduos e perigosos?
_ Peta! lorota! Tal pensamento não
procede.
_ Não? Pois observe:
Ao longo da ribanceira caminhava um homem. Vinha só, até onde se pudesse
provar a solitude dos passos
visivelmente distraídos. Ausente, arrastava o olhar como quem faz do jugo a
canga da vida. Desprovido de ânimo, aprumava nos ombros roupa de festa: casaco
de longas mangas, camisa de gola limpa. A calça frisada em vinco destacava o corpo saudável e bem-cuidado. Os sapatos
de verniz curado lembravam uma pegada com cheiro de novidade. Era belo, mesmo
que aparentemente só, pois a beleza, na vida prática, necessariamente não se
queda à trança de parcerias. Mas, assim como observava a ribanceira, aquele era
um homem de méritos e condições. Passaria por ela sem esparramar o passo
imberbe. E, à pedra que filosofava sobre as agruras humanas, falharia o
argumento na generalização do exemplo. Quanto mais plano, mais fácil o caminho
dos homens, quanto menor o número de pedras, menor a chance de estrumbicarem-se .
Às pedras reserva-se o tempo da sabedoria inata: presente, sempre
presente. Ao homem que içava os pés calçados pela ribanceira íngreme parecia
faltar o momento. Se era uma descida o caminho de sua rota, quais trilhas ele
embocara antes de chegar ali? Roteiros
da vida têm ladeiras e pedras, montanhas e abismos, pontes e margens movediças.
Assim era! Contudo, a diferença na subida começa na base de qualquer descida.
Subir e descer, descer e subir, alinham-se em paralelos contíguos. Basta um
movimento para estar em um dos extremos, um passo, uma pedra...um homem!
Quando a lágrima guardada deitou-se por sobre a pedra na ribanceira, o
chão abraçou o sentido daqueles passos arrastados: um homem chorava a dor da
existência consciente.
"É
que tem mais chão nos meus olhos
do que cansaço nas minhas pernas,
mais esperança nos meus passos
do que tristeza nos meus ombros,
mais estrada no meu coração do que medo na minha cabeça."
do que cansaço nas minhas pernas,
mais esperança nos meus passos
do que tristeza nos meus ombros,
mais estrada no meu coração do que medo na minha cabeça."
Cora Coralina
Texto: Ivane Laurete Perotti
Texto: Ivane Laurete Perotti