PALAVRAS
PALAVRAS
DESPIDAS
- na linguagem dos sentimentos a emoção é
um verbo irretratável -
"As palavras
proferidas pelo coração não têm língua que as articule, retêm-nas um nó na
garganta e só nos olhos é que se podem ler."
José Saramago
O
último vento da tarde batia em retirada. Recolhia-se às fronteiras do
intangível sem negar o desejo de permanecer rasteiro e presente àquele mágico final
do dia. Um piano soluçava notas perdidas: delicadas memórias recortadas de
antigos trechos musicais. À janela do tempo, braços debruçavam-se em lenta
aceitação. Marcas de várias vidas engrossavam as veias expostas: desvalidos
caminhos por onde a história corria em gotas vermelhas.
Encolhiam-se as
sombras das árvores aguardando o aconchego noturno. A noite, sempre anunciada,
servia de remédio àquele indizível sentimento de porvir: saudade do
desconhecido limiar entre a vida e o que se espera dela. Nada que pudesse estar onde se procurava encontrar. Movimento
unânime e involuntário cuja consciência se entroniza no homem como as raízes
das árvores mortas pela escassez de água. Época das secas? A seca não faculta à
chuva o seu dizimar, antes, muito antes, perscruta o tempo das nuvens e o
movimento do sol. Assim faziam os braços debruçados às janelas a quem coubera juntá-los ou separá-los. Feito
míticas aberturas para o desejo de estar só ou buscar-se, as janelas padeciam aos
pares: malmequer...bem-me-quer...malmequer...bem-me-quer... despetalada
cantilena de culpa e responsabilização: Dai
ao outro o que é do outro e buscai nele o que é seu. Como se, a alguém pertencesse
o poder de fazer rir e chorar, viver e amar, sonhar e acreditar.
Olhos de
todas as profundidades cravavam-se em arco sobre a ponte da esperança : a
realidade cobra alto pedágio aos que olham sem ver e lava em lágrimas os que
teimam sentir. Dualidade líquida entre as margens cotidianas não formam um rio,
mas transbordam em emoções palpáveis
quando o homem aceita ser quem é. Tarefa insana, lúdica faina aos que não temem
colher : Dai a si mesmo o que é seu por
mérito de nascimento. Ah! Frases que se perdem entre as notas do velho
piano. Sombras cansadas de árvores cabisbaixas, florestas devastadas, caminhos
dobrados em curvas, notas perdidas entre a dor e a saudade. Quando a desesperança cria asas, as janelas da alma
fecham-se em alinhada cadência e só a mágica de mais um dia pode quebrar o
nostálgico ciclo da desvalia.
Melancolia? A tristeza se prende onde a ela dão guarida, seja nas fraldas do
vento, seja ao bater da Ave-Maria.
Pelas janelas
do tempo, o vento fazia sua última visita antes de retornar mais livre e forte,
para onde quer se soprasse a poesia. Vários braços pelas janelas deixavam o sangue
correr à deriva, sem molhar o bico da história na própria corrente fria. E o
desejo de sentir, eterno devir,
criava o palco exato para o lapso em
ato, mergulho de fato, de outra noite em mais um dia... outra via!
Ao longe,
muito longe, os soluços de um piano despediam-se.
"Fizemos
dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com
o resultado, muitas vezes, de
mostrarem eles sem reserva o que
estávamos tratando
de negar com a boca. "
(José Saramago)Texto: Ivane Laurete Perotti