TEXTO PUBLICADO NO JORNAL PENSAR A EDUCAÇÃO - FaE/UFMG
PELOS
OUVIDOS DA LEITURA
_ Profe... a gente
pode fazer uma viagem com apenas uma palavra?
_ Acredito que sim!
_ Tem uma palavra
batendo em minha cabeça. E...
_ E...?
_ Me lembra uma
“coisa” que aconteceu de verdade... você sabe, né?
_... sim!
_ Então... a gente pode
fazer uma viagem lá naquele jornal da faculdade?
(Conversa travada
entre professora e aluna do 7º ano, Fundamental II, de uma escola pública, BH,
após um episódio de “perda” de uma amiga)
TERRESTRINA – um conto
para não apagar a voz das estrelas
O frio
que chegava com a noite não lhe provocava desconforto. Naquela hora, quando
todas as paredes da casa calavam as conversas, aproximava-se o momento pelo
qual ela arrastava o dia. Feito tentáculos de polvo saindo de garrafa embaçada,
crispavam-se os dedos no batente da janela entreaberta. Pequena fresta entre ela
e o céu; abria-se um silêncio sem sombras para que as paredes não acordassem do
breve descanso. Dois poços de luz levantavam a tampa das pálpebras e corriam em
linha transversal. Ela desconhecia outro ângulo. Driblava oito anos terrestres.
Terrestre era uma palavra nova. Mais ou menos nova, porque toda a vez que a
ouvia, seguia por novas trilhas de portas e fechaduras. Uma porta abria, outra
fechava a trilha. Quando riscava no pensamento um mapa de letras e imagens para
entender até onde ia, a palavra lhe causava um sobressalto, uma surpresa, um
soluço. Outros mapas colavam-se e descolavam-se na mesma velocidade com que
seus lábios deixavam a língua molhar a borda da boca. Até os sapos
dependuravam-se nas fronteiras de suas palavras. Sapos, gatos, pererecas, e ela
própria. Os que estavam na Terra e fora dela apareciam nas duas pontas dos
sentidos que amarrava embaixo dos braços. O poço dos olhos ia e voltava pela
linha transversal; queria abrir por completo as folhas da velha janela, mas os
rangidos queixosos despertariam a curiosidade da casa e de suas paredes alcoviteiras.
Aquoso, enrodilhava-se nas tranças da noite. A amplidão chegava-lhe ao estômago
líquido. Depois, seguindo o mesmo caminho, batia nas taramelas onde dormia o coração.
Quando dormia era acordado de uma só vez e teimava pular pela janela. O coração
empurrava tanto, tanto que, lá do seu esconderijo fazia piscarem lágrimas.
Piscavam, envergonhadas, no início: duas correntezinhas riscadas pelo pincel
mais fino. Depois, pareciam com uma canoa quando perde os remos. Um tufão de
água sem o barulho do vento. E então, o coração envergonhado jogava a caixa de
sentimentos na primeira correnteza.
Todas as noites,
desde que sua lembrança guardava memórias, eram assim: noites molhadas. Conhecia
cada movimento à sua frente, mas não tinha domínio sobre qualquer um deles. Quando
os olhos se esqueciam de estancar as lágrimas piscadas e o coração afundava,
afogando-se, imaginava pedir aos dedos de polvo fugitivo que se afastassem da madeira;
imaginava ouvir a janela reclamar da indecisão do abre ou não abre;
imaginava-se doente: o fôlego do frio que tomava o quarto beliscava a pele,
avermelhava o nariz achatado e deitava irritado sobre as cobertas que cobriam a
pequena cama. Imaginava, apenas. Mantinha os olhos pregados no céu fluorescente,
imobilizada pelas lanças dos raios que desciam. Ouvia o canto das estrelas: rabiolas
de música colorida atravessando as pipas feitas de nuvens. Os pés calçados em
chinelas gastas queimavam pelo cansaço da posição; o cabelo solto colava-se ao
rosto e o nariz soltava melecas despropositadas. A noite era sua, mas a melodia
não. Se o poço dos olhos abandonava a
canoa sem remo na correnteza das lágrimas, os ouvidos teimavam em não lhe caber
por dentro das orelhas. Partiam-se em milhões de pedaços, pequenos pedaços de
ouvido espalhados para fora da cabeça. Muitas vezes os via, retorcidos,
cobrando um empurrão, uma mãozinha para chegar mais perto da música. Um pouco
mais e a melodia das estrelas caminharia pelo céu na concha dos caquinhos e,
então, se ouviria para sempre aquela canção. Durante o dia, nas tardes
ensolaradas, sob os pingos da chuva e bafejadas dos ventos, ouviria a canção.
... Venham me buscar. Por favor, venham
me buscar. Estou com saudade! Venham me buscar...
As
paredes da velha casa, entre chorosas e constrangidas, faziam de conta não
ouvir aqueles pedidos insistentes. Brecavam os argumentos nas juntas das lascas
nodosas. Escondiam explicações por entre os caminhos das formigas brancas:
cupins de casca grossa, bichinhos capazes de comer uma casa inteira e de corpo
macio como o algodão. Muito tempo
assistindo às histórias que ali se desenrolavam em carretéis soltos na rampa de
costura. Não se lhes permitia interferir. Mesmo porque não daria em nada. As
histórias e as pessoas entravam e saíam da casa, voltavam algumas vezes, mas
nada além. Ou, além disso, nada! Mas
aquela menina deixava entrar areia, poeira e pó nos acontecimentos conhecidos.
Poeira das beiras da noite, que bem se deixasse dito. Pó das quinas da lua.
Areia que se acumulavam atrás das palavras esquecidas. Na verdade, as paredes
alcoviteiras compadeciam-se da menina. Tantos anos ali, naquela casa, naquele
quarto pequenino, diante da janela entreaberta, fazendo o mesmo pedido: Venham me buscar. Por favor...
Não
era por acaso que o madeirame carcomido gemia em silêncio e o poço dos olhos da
criança cavoucava cada vez mais fundo, cada vez mais alto. Alto como a lonjura
das estrelas, fundo como a saudade que ela sentia.
Piscavam
lágrimas: chuviscos, pisca-piscas. Brilhavam aquelas pérolas de água humana. Venham, por favor. Estou com saudade...
Amanhecia
quando, sobre o próprio choro, ela adormecia. As folhas encarquilhadas da
janela fechavam-se de vez empurrando o frio para fora do quarto. Assustados, os
cobertores encolhiam-se ao pé da cama. Juntos, bem juntinhos abraçavam o sono
da criança.
Pouco
se sabia sobre o dia que a menina arrastava pelo lado de fora da casa. Ela não
contava. Não contava o dia em dias, nem contava as coisas do dia. E por mais
que as paredes se esforçassem, o lado de fora tinha muitos lados. Misturavam
histórias e gentes, gentes em histórias, histórias das gentes e não havia lenha
para tanta fogueira. Bastava-lhes o lado de dentro e os fatos cochichados em
quase segredo, rebuliços da vida humana.
O inverno,
naquele ano, invadiu as noites com uma capa de frio ainda mais grossa e áspera.
O gelo fazia arrepiarem-se os contornos do quarto. A menina terrestre parecia
não perceber. Os dedos em forma de tentáculos permaneciam crispados sobre o
batente da janela. As folhas entreabertas sussurravam comiseração. Tentavam
impedir a saída do pouco calor que rondava o quarto às escuras. Não fosse o
brilho esbranquiçado do céu, as bordas da cama ficariam invisíveis. Até mesmo
as paredes encolhiam-se, pesarosas e resfriadas a fôlego curto. A noite brincava
com a baixa temperatura e cobria a terra com um véu de puro gelo. Era um
inverno de lágrimas afiadas. O poço dos olhos rangia em baldes o líquido
salgado. Cedendo ao peso dos sentimentos da menina, as cordas que piscavam
lágrimas desciam sem freio. Cordas encarregadas de derramar o conteúdo das
emoções.
Por
alguma razão desconhecida, as paredes percebiam um crescente nos pedidos da
menina. Não, não aumentara o número de frases: curtas e insistentes. Aumentara
o grau da insistência. O volume dos sentimentos pesava para fora como nunca
antes. Uma nota de urgência atravessava a voz quebradiça: sussurros entremeados
por soluços. A menina sofria, não havia dúvida. E o seu gosto desmesurado por
buscar estrelas era até compreensível, pelo menos para as paredes, únicas
testemunhas do flagelo emocional que se desenrolava no quarto fechado em noite
e noites repetidas. Clara tristeza! Clara saudade! Mas os pedidos não eram
claros. Sim, as paredes sabiam muito bem o que a menina pedia. Ouviam-na sem
vezes a fio... a frio! Mas não conseguiam entender de onde partia o desejo de
ir-se. Ir para onde? Quem poderia buscá-la? Quem ela esperava e de quem sentia
tamanha saudade? Nem os cochichos mais desembestados davam conta de arrematar
uma resposta. Só especulações. A menina poderia estar dizendo uma coisa por
outra, ou uma coisa no lugar de outra, típico da imaginação criadora, comum
entre os que usavam tantas linguagens. Tudo era possível. Nada se alinhava como
definitivo. O pedido era o mesmo noite após noite, com ou sem estrelas,
estivessem na estação do céu claro ou carregado de nuvens. Até mesmo em noites
de chuva grossa a menina encontrava aquela linha atravessada entre o céu e a
terra e partia através dela. O corpo estava ali, grudado pelos pés ao chão de
várias frestas. O coração subia, subia e demorava a voltar. Se é que voltava.
Naquele inverno, mais do que em outros, a menina sofria.
Não demorou
a que uma grande geada se formasse tão logo a noite abrira sua bocarra, no
tempo mais frio do frio já visto até então. O gelo tomara a face da terra. Por
aqueles lados, bichos e plantas sentiam o peso do inverno dentro dos
esqueletos. Plantas amanheciam mortas, bichos nem sempre amanheciam. Era frio
demais até para as paredes empedernidas.
Foi o
lado esquerdo do quarto que vislumbrou o cansaço da criança. Talvez pelo
inverno fechado, talvez pelo dia que não contava, ela chegara ao quarto
adiantando-se à noite e ali ficara. Primeiro em silêncio, depois, com as tampas
dos olhos abaixadas, deitou o rosto ao vidro da folha por abrir, pediu mais uma
vez: Venham me buscar... estou com
saudade! E foi o primeiro e único pedido que se ouviu naquela noite. Em pé,
no mesmo e inevitável lugar de sempre, olhava para o céu, piscando lágrimas
enquanto esperava. Esperou, esperou, esperou. A cama, sucumbindo à ansiedade de
outra noite, tomou a dianteira e espichou as guardas até o pequeno corpo. Com a
ajuda inesperada do madeirame, as paredes contorceram-se, suavemente,
envolvendo a menina em braços de conforto. Assim ficaram. Imersos no trabalho
de mantê-la aquecida, não viram a noite fechar a boca da escuridão. Por alguns
segundos, os contornos do quarto cerraram os olhos e descansaram dos
movimentos. A menina dormira.
Os
lados de fora da casa não contaram. Jamais contariam. Sabiam-no as paredes e as
velhas janelas debruçadas em par. Enquanto a manhã recolhia as estrela, o céu
veio abaixo e, com o restinho da noite que lhe cabia, beijou as faces da
menina, penteou suavemente os seus cabelos, prendeu o brilho de uma estrela no
alto de sua cabeça, vestiu-lhe uma túnica feita de cristais da lua. Como que
preocupado com a perfeição de seu trabalho, o firmamento conferiu uma última
vez as impressões daquele quadro. Uma pintura que vazava os limites da vida.
Outra
noite depois da noite arrastou-se para dentro do quarto. Um silêncio sem nome
colou-se às sombras e impediu as paredes de verem para além da saudade. A
menina terrestre dormira o sono de seus desejos.
Ivane
Laurete Perotti