PONTO
PONTO
DE PARTIDA
Naquele
final de tarde, todos os alunos do 5º ano permaneceram em sala, mesmo com o estrondoso
sinal indicando o encerramento das aulas. Crianças de outras turmas buscavam o
portão da escola como que se saíssem de longa reclusão. Vozerio, gritaria,
palavras de despedida misturavam-se e chegavam à sala silenciosa. Trinta e oito
alunos permaneciam sentados, sem o menor indício de partida. Constrangido, o
professor perguntou da soleira da porta:
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Vocês ouviram? Bateu o sinal! Vamos!
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...
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Hum? Vamos?
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Não, ainda não. – era a voz de um menino.
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Está tudo bem? – perguntou o professor.
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Não. Não está! – respondeu o mesmo.
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Posso ajudar? – emendou o professor voltando para a frente da turma.
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Não sabemos... – foi a resposta de uma menina.
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Bom... é um começo! – considerou o professor, com um meio sorriso.
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Professor, nós não queremos que o ... o... você sabe, volte para casa hoje.
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É! Não queremos! – vários alunos falaram
ao mesmo tempo.
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Ele pode ficar na sua casa? – era a voz da menina mais próxima ao... ao aluno
em questão.
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Pode ficar na escola? – perguntou o primeiro menino que iniciara a estranha
interlocução.
A
interrupção de um movimento ainda é um movimento e, eis que na rotina da saída
dos estudantes da escola, o 5º ano quebrava a harmonia das ausências. Não mais
do que previsto, a coordenadora da escola pública procurou a sala e as devidas
explicações.
Dois
adultos capacitados, dois professores de longa data, familiarizados com o
território e os lugares da/na escola, olharam-se por segundos intermináveis.
Mais cedo, ambos haviam participado de um acontecimento que dividira opiniões: da
banalização de histórias dolorosas como “... coisa de quem deseja chamar a atenção”, ao discurso do “... essa responsabilidade é da família, não da
escola”. E o centro do acontecimento, um menino que contava com 11 anos de
idade cronológica e muitas narrativas de desamparo. Estava ali: deitado sobre
os braços cruzados, aparentemente distante das vontades e dos mundos. A mesa
rabiscada recebera a sua cabeça e muitas lágrimas. Ficara ali.
_
Professor, ele pode ficar na escola? Nós ficamos com ele.
Os
pais que aguardavam aquela saída como sendo apenas um dos movimentos da rotina
diária também procuraram pela sala indagando acerca do atraso. O silêncio da
turma imperou sobre as respostas. Mas como o silêncio tem várias faces, alguns
pais cochicharam: “...outra vez?”, “Ah! Deixem o Conselho Tutelar resolver e ponto
final.”, “... vou me atrasar para...”,
“Isso não é assunto para crianças!”.
O
que parecia não ser assunto para crianças tomou proporções pragmaticamente
sensíveis. Parecia pouco, mas naquele final de tarde, o... o aluno em estado de abandono foi tomado
pelos colegas em um abraço consciente.
Atrasaram-se
todos. O acordo não foi simples: contou com a boa vontade de alguns e a
presença de outros. Estado, escola, família... qual é a ordem? Família, escola,
estado?
Sem
conhecer a estrutura de responsabilização legal, uma turma do 5º ano, ensino
fundamental I, tomou para si as dores de um colega. Ponto final. Não! Ponto de
partida! Tal fato ocorreu na última sexta-feira, dia 12 de abril de 2019, na
cidade de Belo Horizonte, MG. E possivelmente, por alguns momentos, uma criança
serviu-se do direito inalienável de ser cuidada.
Ivane
Laurete Perotti