E PENSANDO EM PENSAR...
A ARQUITETURA
DAS SOMBRAS
- sob as lajes
da significação prosperam armadilhas conceituais -
Talvez
nunca tenhamos tido em nossa história necessidade tão grande de ensinar, de
estudar, de aprender mais do que hoje. De aprender a ler, a escrever, a contar.
De estudar história, geografia. De compreender a situação ou as situações do
país.
Paulo Freire
No mundo das coisas e
nas coisas do mundo pairam sentidos. Sentidos criados, nutridos, derivados,
arquitetados, manipulados. Entre as coisas do mundo pairam seres: visíveis,
invisíveis, detectáveis, imperceptíveis, deletáveis. Entre os seres e as coisas
armam-se guerras: sangrentas, frias, computáveis. Entre as guerras e o mundo as
coisas enterram os seres, digerem os sentidos e criam armadilhas de segregação.
_ Ô, profs,
prá que istudá geografia? Coisa chata!
_ Para começar,
talvez... para aprender o conceito de “chato”.
_ Ah! Todo o mundo sabe
o que é “chato”.
_ O que é “chato”,
fulano?
_ Isso daí! É muito
chato falá de mapa... não quero saber
disso!
_ Bom, pode não ser
interessante para você, mas certamente, “chato” não é.
_ É!
_ Você só conhece um
sentido para a palavra “chato”?
_ Ah! Sei lá... chato é
chato. Entende?
_ Não!
_ Dãa! Também pode ser
assim...ó! Que é assim... ó! – duas mãos se movem diante dos olhos da
professora de geografia.
_ Eu não entendi!
_ Olha as minha mão, profs...assim...entendeu?
_ Não!
Mãos e mapas têm em
comum bem mais do que o fonema /m/. Mãos desenham mapas. Mapas desenham
fronteiras. Mãos e mapas expressam a necessidade humana de dar a conhecer o
espaço das negociações. Onde começa um e termina o outro independe da vontade
popular: a injusta moeda está no território das coisas e no poder que paira
sobre elas.
_ Ó, profs... aula de filosofia?
_ Não! Aula de anatomia
do pensar.
_ E...?
_ Aula de geografia!
_ Não dá prá
tirá os mapa?
_ Também gostaria,
fulano! Também gostaria! Mas retornando ao “chato” ...
_ Já entendi... agora é
aula do português.
_ Sério? Onde ele está?
_ Pirô, profs!? Quem?
_ O português, uai!
Entre os risos que
explodiram na sala, alguns detectaram o indecifrável momento da dobra. O indelével movimento do sentir e
do tomar para si. O indescritível movimento de pensar o pensado e correr o
risco de ir além das fronteiras da sisudez.
_ Fulano, ser “chato” e
estar “chato” são dois...
_ Já entendi! Eu queria
falá du primero...
Todos concordaram. A
professora emplacara o jogo das luzes e vergara a fechada curva das sombras. A
arquitetura da aula de geografia projetara-se viril e alegre: as coisas do
mundo podem indicar ciladas, criar armadilhas, erguer diques de desconstrução.
Mas a escrita do mundo tem território próprio e, mesmo que se negue a presença
das mãos em /o/, ainda assim, os seres têm o poder de desenhar o seu espaço de
expressão.
_ Ô, profs... a gente podia fazê uns campeonato
di pensá. Mó di boa!
_ De boa!
_ Di boa, profs... di boa...
E a significação
recebia o lugar de destaque: sob a laje das criações, vingavam versos, mãos e
palavras de construção.
Ivane Laurete Perotti
Referência
FREIRE, P.; HORTON, Myles. O caminho se faz caminhando: conversas
sobre educação e mudança social. 4ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003, p. 114.
https://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/a-arquitetura-das-sombras/