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A EDUCAÇÃO PARA
A EDUCAÇÃO
- o campo dos
saberes e as fronteiras da negação -
[...]a
transformação da educação não pode antecipar-se à transformação da sociedade,
mas esta transformação necessita da educação. Paulo Freire
Havia uma praça. No
centro da praça havia um coreto. Aos pés do coreto havia uma placa indicativa:
“entrada proibida”. Para os que chegavam despreparados, o aviso provocava
gargalhadas. Para os que conviviam com a praça, a placa era uma deleitável
ironia do representante eleito. Para o guarda municipal, a placa era uma ordem.
_ Saia daí, moleque!
_ Eu não fiz nada, seu
guarda!
_ Não se aproxime do
coreto.
_ Eu estou do lado de
fora.
_ Não viu a placa?
_ Vi!
_ Então, não sabe ler?
_ Sei, mas o coreto não
tem porta...
_ Não importa!
_ ... porta!
_ Sem piadinhas, seu
moleque! Passa longe! Passa longe!
Havia um coreto.
Construído por uma administração que gostava de música, fanfarra e muitos
comícios, especialmente este, permanecera ativo por várias gerações. Fora
testemunha dos humores, das vontades, da cultura barulhenta, da bondade e até
de grandes paixões. Fincado em pedra firme, elevava-se com soberana elegância
no centro da praça florida. A base sem gradil dava espaço para um telhado
amplo, bem instalado. Dizia-se pela cidade que nem mesmo um terremoto poria
abaixo aquele monumento. Era um monumento: ali se ouvia e se fazia ouvir as
vozes e os silêncios. Era um coreto de muitas políticas.
_ Você entendeu a
atitude do prefeito?
_ Ah! Deve estar
preservando a construção...
_ Não! Essa construção
ninguém derruba! Ele está é mangando com a cara do povo.
_ Ele não tem tempo
para essas coisas.
_ Essas coisas têm
tempo para ele.
Quem passava pela praça
argumentava. Quem argumentava não conseguia produzir motivos cabíveis para a
administração pública manter o coreto sem acesso. Era caso de chacota ou caso
de educação para as leis.
_ Não é lei, é só uma
bizarrice.
_ Lei é lei.
_ A lei é para quem?
_ Não é “para quem”. A
lei é “de quem”?
Quase um ano após a eleição do governante da
cidade e de sua expressa decisão proibitiva, o coreto voltou a ser assunto
sério. Um acontecimento tomou o inglório espaço da trivialidade: alguém
desobedecera a lei.
_ Já solicitei
apreensão do meliante.
_ De quem?
_ Do meliante!
A notícia correu pela
cidade. E a cidade acorreu à praça. Entre murmúrios e perguntações, o guarda deu o recado.
_ Lei é lei: não tem
nome ou endereço, idade. O delegado está a caminho.
Do alto de sua proeza,
o guarda municipal não percebeu que o rosto da multidão tornava-se um. Um só
rosto espichado em direção ao coreto. No coreto, ao canto de uma pilastra,
dentro das fraldas que ainda o carregavam, dormia a sono solto o caçula de Dona
Berê.
_ Mas... é o... é
um...bebê!
_ Um meliante!
O coreto balançou.
Balançaram-se as memórias cravadas no tempo das coisas inertes e as coisas
inertes tomaram o lugar dos fatos. A chegada do delegado foi insuficiente para
conter as pessoas que se deitaram no coreto, uma a uma, dentro e fora dele, até
quase sem deixar um lugar para a Dona Berê ofegante:
_ Seu guarda, o senhor
não tem educação?
O guarda ainda não
sabia, mas faltava-lhe a consciência do coexistir: na arte e na guerra, a vida
reinterpreta-se tantas vezes quanto a educação permitir.
Ivane Laurete Perotti
Referência
FREIRE, Paulo. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez, 1991, pág. 84.