FACES ENCOBERTAS


FACES ENCOBERTAS

                                        - A história que se faz não é a história que se conta -


                                             "A história é êmula do tempo, repositório dos fatos,
                                             testemunha do passado, exemplo do presente,
                                             advertência do futuro."
                                                                               Miguel de Cervantes

                                           Em um quadro de alucinação consciente, vi Cervantes e Shakespeare em desabalada carreira pelas nossas ruas eivadas de verde e amarelo. Eivadas de fumaça, bombas, gritos, manifestações de direito, de fato, e manifestações de incontida violência. No cenário conturbado, uma discussão sobre o peso semântico, gramatical e etimológico do verbo emular destacava-se acima do gás e dos protestos: para Cervantes, pai da frase em destaque, emular queria dizer imitar, seguir o exemplo de alguém. Era um verbo transitivo e exigia complemento para ter um sentido gramaticalmente completo. Shakespeare, tão sagaz quanto seu argumentador, observou que na frase eternizada por Miguel, êmula pertencia à classe dos substantivos e dos adjetivos, significando competidor, concorrente, adversário, rival. Ambos concordavam que a palavra derivara do latim aemulus. E tanto um quanto o outro decidiram conter-se diante da razão que lhes cabia. A origem da discussão se dera por ordem da consternação em que se encontravam os dois pensadores. Habitavam o limbo da história, aquele espaço permitido aos grandes sábios que transitam entre os tempos sem qualquer sequela quântica, física ou espiritual. Espaço reservado aos que se mantêm no tempo e fora dele no mesmo continuum. Difícil de imaginar, simples para entender: Cervantes e Shakespeare nos olhavam de cima. E de cima, o olhar se amplifica, ganha dimensões políticas de uma limpeza improvável aos débeis mortais.
                                   Se a história imita o tempo, com ele concorre e indicializa o porvir, caberia cá em baixo uma breve leitura do que se passa. Breve, muito breve, para não nos perdermos em arremedos de discursos construídos em círculos vazios de sentido e lucidez. Difícil! Cá em baixo estamos mergulhados no mesmo contexto de múltiplos poderes. Difícil, mas não impossível! Acredito ouvir a voz de Cervantes em Dom Quixote de La Mancha! Acredito!
                               Ah! Sancho! carecemos de vontade. Carecemos de lucidez, carecemos de entendimento, carecemos de carecer! Pois!
                              Como limpar uma leitura de nosso tempo emulado em uma história desprovida de verdade? Que verdade? Qual das verdades contadas, que parte das verdades escondidas e na voz de quem?
                                   Esse é o cenário ideológico que nos circunda e move. Movemos e somos movidos, com maior ou menor noção da passiva agentividade. Acreditamos ser sujeitos de nossa história. Talvez exatamente por esse pequeno detalhe metafísico (...) deixemos de fazer a simples leitura: o silêncio manifesta-se nas asas da impune arbitrariedade democrática.
                                   Sob os olhos alongados dos que estão acima da lei e da ordem, esgueiramo-nos pela história não contada no tempo presente. Presente, passado e futuro embolam-se desatinadamente enquanto deixamos que falem por nós. E continuarão falando. De um modo ou de outro: continuarão falando.
                                 Mais uma vez ouço Miguel:
                                 "Um dos efeitos do medo é perturbar os sentidos e fazer que as
                                     coisas não pareçam o que são."

                                     Miguel de Cervantes

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