CONTO PREMIADO NA ITÁLIA
CONTO:
O FAZEDOR DE SANTOS
Não era
difícil encontrar as madeiras deixadas para trás. As tempestades da vida
desabam sem anúncio prévio e muitas árvores tombam diante do inevitável.
Recolhia-as com o cuidado de quem socorre um doente recuperável, cuidando das
marcas que o tempo e a força da vida imprimiam em cada uma delas.
Deparava-me com sulcos profundos como a alma
presa em calabouços esquecidos; buracos que indicavam a presença de outras
forças, lascas perdidas que desenhavam contornos e ferimentos. Minhas mãos
percorriam as feridas abertas e as saudavam com conhecimento de causa. A
madeira agradecida devolvia-me leituras e sentimentos, imagens de
acontecimentos em planos diferentes, visões que eu sabia estarem ali e no
momento certo seriam trazidas à forma.
Eu era um
fazedor de santos. Caminhava por vias nebulosas, entre fronteiras que cediam à
menor pressão. Esculpia. Fazer santos era um ofício de várias mãos herdado no
silêncio das lições de meu pai. Não escolhera modelar a madeira. As madeiras
escolheram-me para modelá-las ao prazer e à necessidade do acaso. Era sempre o
acaso que me levava por caminhos sombreados e esquecidos. Gostava de caminhar
procurando pensamentos perdidos. Assim as encontrava: trancando as trilhas,
caídas aos pés umas das outras, carcomidas por hospedeiros naturais,
dilaceradas por raios e ventos traiçoeiros, alquebradas por mãos desavisadas. Carregava-as
com os braços abertos de par em par. Ia sozinho, perdido, desencontrado,
sofrido. Saía atrás de minhas dores e caminhava para qualquer lugar. Dores que
eu não sabia expressar em palavras. A poesia não se talhara em mim e faltava-me
o desejo de abrir a boca e gritar o quanto me queimava o fogo da inquietude.
Pesava-me o preço da sensibilidade em um cenário que cobrava os depósitos
antecipados. Debilitava-me a força empregada na ação não desejada. Dizia-se de
mim o que eu não reconhecia: era um homem sonhador. Desculpava-me diante da
vida fazendo imagens daqueles que haviam encontrado as razões que me
faltavam. Eu guardava razões em blocos
fechados e arrastava-as feito prisioneiro de história mal contada. Havia
buracos em mim pelos quais a beleza intocada esvaía-se lentamente. Perdia a
inocência dos sonhos estraçalhando a esperança. Traçava metas inatingíveis
mascarando fases de extremo desespero com momentos de absoluta criação. Eu não "fazia
santos", eles vinham até mim cobrando os débitos dos fragmentos que eu
deixava pelo caminho. Também eu era um tronco tombado, sulcado, esfacelado,
aniquilado por divagações tempestuosas. Perdido, truncado, isolava-me olhando
para o chão coberto de cacos e restos. Deles fazia a expressão de minha arte.
Se é que assim se poderia chamar o desejo insano de colocar um rosto onde as
passagens se fechavam. Buscava os contornos, as esquinas, os desvios sem o
desejo de ultrapassá-los. Movia-me pela força contrária ao dom que se
manifestava. Eu esculpia um pedido de perdão pelo vazio de minha alma.
Em uma dessas
tempestades que arrasam tudo a sua volta, sobrei eu: caído aos pés de uma porta
entreaberta. Uma porta sem tranca, cujo esquadro desfizera-se em pedaços. Braços
pesados, mãos sangrando, levei meu corpo para dentro da casa vazia. As paredes
carcomidas e solitárias abraçaram-me com um calor desconhecido, febril,
latente. Acostumado às agruras dos espaços frios e vazios, comoveu-me o
aconchego. A casa de adobe guardava os restos da história de alguém. Restos
espalhados a esmo pelo chão batido. A terra macerada acarinhou minha face
contorcida pelas dores ocultas e pelos excessos cometidos: eu procurava
anestesias externas. A luz entrava sorrateira como se pedisse desculpas pelo
brilho que rasgava o ambiente. Pequenos rasgos, nesgas do dia que lá fora abria
um sorriso sem disfarces. Descobri que três cômodos dividiam as paredes
aconchegantes. Como um náufrago de si mesmo, arrastei-me pelas divisões
contando os objetos deixados para trás: uma caneca velha, alguns trapos sem
cor, algumas caixas vazias, um velho e gasto sapato sem par, uma mesa sem
tampo, um...
Segurei minha
cabeça e deixei o vômito azedo das lágrimas retidas saltarem em jatos.
A um canto,
tombado sobre outros restos, eu o vi. Enegrecido, sem uma parte do braço
direito, um São Francisco de Assis olhava-me. Trêmulo, chorando como choram as
crianças e os santos, levantei a madeira talhada. Os sulcos imberbes sobre a
peça antiga deixavam-se ver aqui e ali, contrastando com a precisão do olhar
impregnado de compaixão. Tanto procurara por aquele olhar, tanto desejara
imprimir em minhas esculturas aquele sentimento que me escapava por entre os
dedos. O santo de madeira fixava-me através da poeira. O cordão de suas vestes
chegava aos pés descalços. O ferimento no dorso da mão que levava ao peito era
profundo. Sem autor, sem data, sem nome. Um entalhe abandonado, um trabalho
inacabado. Sobre o chão de terra, em lágrimas, pensei com firmeza: "A
madeira já traz o santo, eu só preciso encontrá-lo."
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