LOUCURA SEM COLA
A
LOUCURA É UM ADESIVO SEM COLA
- disjunção do
homem e da viola -
“A
loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana. Não ter
consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal. Não ter consciência
dela, e ela ser grande, é ser louco. Ter consciência dela, e ela ser pequena, é
ser desiludido. Ter consciência dela, e ela ser grande, é ser gênio.
FERNANDO PESSOA
Eu disjunjo, tu disjunges, ele
disjunge, nós disjungimos. Eu tenho disjungido, tu tens disjungido, ele tem
disjungido, nós temos... sacaneado a legítima
loucura. Cordões de amplo espectro separam-nos do jugo aceito ou a ele nos
amarram mantendo a trajetória em passiva ordem. Desordem: marionetes do
invisível e improvável fluxo manifestam as arestas da normalidade rompida. Homens caminham sobre trilhos manchados e sem sombra.
Trilhos e homens estendem-se abaixo da linha do horizonte. E é do horizonte que
fluem as lágrimas inconsistentes a lamber os pés esfolados no compasso da canga: preito de obediência. No entorno
dos caminhantes apressados fenecem ideias opacas, desmaterializadas nas
labaredas do fogo ausente; carecem todos de arbítrio e energia para fundi-las ao
desejo e à vontade prática. Loucura necessária! Observa-se o poder da cola: em círculos vagam os pés vazios.
Vai para além do óbvio a
lógica de romper o lacre. Desbrilhado
pelos atalhos que a sanidade cotidiana rabisca no rascunho fixo da vida, o nada, turvo e pobre, deita-se em rede
furada. Não é peixe! Não é peixe! O cardume fugiu! Deleitam-se os tubarões: comensais
de prontidão conhecem a normalidade das praias, antecipam as refeições,
instalam-se. Ai! Ai! Ai! Pescadores da justiça, contritos portadores de leve loucura, adiantem-se às exigências
legais debitadas nos votos da gola fausta. As malhas finas tecem outras redes,
impermeáveis e exclusivas. É assombrosa a pasmaceira que aguarda o milagre da
justificação. Valha-me a loucura consciente antes que seja tarde aportar ao
lume da redenção. Homens caminham, peixes entregam-se em profunda comunhão.
Na turbulentamente
democrática sociedade moderna, separa-se o joio do trigo na barcaça de CARONTE desautorizando
HADES a festejar o conluio: dá-se a
cada um o que é seu e o que seria de
todos... o tubarão comeu! Inverdades
sobrevivem longe da praia! Insana esperança a de que o doce rio AQUERONTE leve
para o devido lugar o curso da morte lenta. Sem moedas a cobrir os olhos, os homens
lavam os pés na mitológica imprecisão da loucura certa. Verdade? Descobri-la é
um peso sem preço na passagem dos trilhos manchados. Carrega-se a viola, esmola,
ao repartir o lugar das vozes sem melodia.
Violam a viola destra como se ninguém mais
precisasse pensar. Só andar, sem parar. Pés andantes, sem parentes, moram na
linha do trem. Não há fumaça na locomotiva massiva: o trem não vem. Avisem
alguém!
Tiram da emoção dos
homens o homem cru; instalam o homem nu, fruto da inauguração vitoriosa.
Estátua de bronze não chora. Só a viola, esta estranha metáfora das ondas ocas
pelas quais o som da vida mareia o sal da terra.
Foi no fogo da
indignação que a cola perdeu o prumo e a loucura fez poesia para derramar-se em
dor pelas beiras dos que se fazem despidos. Despidos, mas não esquecidos.
Esquecidos...
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