VIDA CRUA

OS AÇOITES  DA VIDA CRUA

           -  na calçada da existência as estrelas são invisíveis -

"A vida não se resolve com palavras."
João Cabral de Melo Neto

                                   No aberto recorte da janela a lua pede passagem. Mancha de luz  circular  ao pé da escura noite recém-nascida. Muitos não a veem. A maior parte já esqueceu. Outros, não poucos, jamais a conhecerão.
                                   Janelas são pálpebras do mundo construído e a lua, astro reticente, faz par com as estrelas cadentes: rasga o céu pedindo ajuda. Clemência! Aos homens em estado de obediência, sirva-se a cautela ausente, clemência! Argumento debruçado à janela da subserviência. Nem escravo, nem rei: sábio é aquele que conhece o que tem! não tem, falta alguém!
                                   Quem vem e quem vai pelas calçadas ardidas, carcomidas?
                                   Chora a lua, impedida, à meia janela.
                                        Chora o neto da avó: ela  não sabia que, mais dia, menos dia, outro menino viria, direto da cria, deixou-se levar. Assim corre o roteiro da vida crua, entre gruas de euforia, ensejo de alegria, farto modo de aguentar.
                                        Para alguns, o cabo da esperança entorta ao contato da aliança, para outros, antes que anoiteça, a escuridão cobra a sentença. Diga-se na poesia o que ao discurso é desvalia: fere o verbo, destroça a palavra, esconde o grito, esse maldito que toma o lugar de anunciar. Medo e drama fazem a trama no mundo da fama que ninguém quer negar. Conhece o tempo, fixo alento, no pleito de amar. O mundo em chamas, um dia proclama: deixe a faina, venha cantar! Canta o hino, doce rabino, parece falar: do reino ao treino, afina a rima, desce a rapina, vulgo clamar! Ao homem o trono, o único dono a reclamar. Ave meninas, o dia ensina mandar e calar.  Modo sebento, arde o unguento, não se sabe rezar!
                                      Palavras enganam: profanam o modo de interpretar. Diz o que disse, à página fria, em ordens do dia, deixou-se matar. Quem cala exala o cheiro da sorte, em franco aporte, faz-se salvar. Respeito ao peito é outro direito de quem pode  contar. Fala e embala o efeito sem dote, vulgo consorte, cabe aceitar. Plano de vida, calçada erguida no muro de alguém: trocam-se tiros, pontos e bilros, talvez o sorriso apague a tez. Rosto comprido, chiste rompido: lucidez?
                                   Sem holofotes, estrelas, archotes  choram a morte, dentro do forte, quiçá viuvez. Quem disse que o dito, salvo conduto, mede o luto de mais uma vez?  
                                    Apagam-se homens, crianças e drones no mundo de clones, persiste a fome, denso ciclone, ventos do mal. Almas sem dono,  migram na guerra, vendaval! Clemência, demência fazem igual! De quem é a culpa de outro viral? Mais um e mais outro galgam o status, fino contractu de quem com o além. Nem bicho, nem pano, fecha-se o ano: de novo o novo convence ninguém! Guarda a alma, salva a calma, mantém-se, amém! O mundo açoita, moça afoita, você não o tem: leva o ancho, deixa o gancho, a lua soletra, entreaberta, arrasta a coberta, vaivém. O acordo não prima, densa a rima , escolha a mina: vai e vem! Correto também! A língua, tanso enigma, abole a cisma, absolve e lima, vence a chacina: réquiem!
                             
"Mesmo sem querer fala em verso
Quem fala a partir da emoção"
                                      João Cabral de Melo Neto
Texto: Ivane Laurete Perotti

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