TERRA SEM CHÃO
MURO
HUMANO
-
valeria subir pelas paredes dos ombros se o sistema não se fechasse em conchas -
“A desvalorização do
mundo humano aumenta
em proporção direta com a valorização
do mundo das
coisas.”
Karl
Marx
Da seca árvore
restava a sombra tardia. Alma nenhuma disputava o espaço recortado no solo
vazio. Sem engano, um tortuoso panteão formava-se acabrunhando Hades na escuridão dos subterrâneos
abarrotados de mortos. Zeus abstinha-se
de comentar o inexplicável.
Na superfície das
almas sem pegadas, Hefesto
incapacitava-se na proteção aos metais, ao fogo, ao trabalho: sobrepunham-se
eles todos em camadas de ganância e poder, centro de um sistema construído
sobre pirâmides desiguais. Enganavam-se os que esperavam prosperar pela ação
dos ombros, das mãos e da valentia. Teimosa valentia, vislumbre de um passado não
visitado para a compreensão da história humana – repetida história em lições
insípidas aos olhares de pouco caso.
Entardecia e o sol disputava a esperança dos
astros agnósticos. Hermes despedira-se da diplomacia confessando-se impotente e
esquecido. Ártemis perdera o selvagem
poder de circular livremente pelas matas: abatida em uma caçada pelo prazer
descabido, agonizava diante da lua e suas lágrimas prateadas debruçavam-se na
janela do mundo real. Ao seu lado, as ninfas
perdiam a sensualidade pura das antigas danças e as mulheres ainda pagariam o
preço dos excessos não identificados. As florestas, violentadas e vazias de justiça,
não mais protegiam a essência feminina, ícone da força silenciosa e constante.
Postas a descoberto, as criaturas livres não reconheciam Crono e Perséfone
limitara-se a guardar a primavera em um cadinho entregue às mãos de Éris, deusa da discórdia, talvez a única
a manter-se viril e ativa, alimentada diariamente pela cumplicidade com Ares, o pai de todas as guerras.
À sombra da árvore
seca, o espírito de Gaia decidiu
lançar um desafio final: que se aproximasse um homem de boa vontade, que
viesse, mesmo que só, mas que se apresentasse inteiro e disposto a olhar para
além do próprio umbigo. Gaia
ajoelhou-se em espera reverente.
Crono conhecia a tenacidade telúrica daquela
que clamava por todos e, em sucessivas tentativas, cedeu o próprio lugar para Deméter: mas as colheitas permaneceram
abundante e repetidamente nas mãos de poucos; a Poseidon: os mares levantaram-se em vagas de aviso e nem os discursos
catastróficos sublinharam o sentido do sinistro apelo; para Hera: os nascimentos na Terra há muito,
haviam descontrolado a ordem natural da vida;
a Eros: desconhecia-se; para Héstia: aguardava por um lar em um
orfanato sem endereço; para Hebe:
alheava-se em buscas insanas – juventude tornara-se consumo obrigatório; para Apolo: assumia-se poético tanto quanto comercial
– dualidades aceitas na vivaz política de controle do investimento capital; ofereceu
para Atena: ela sofria a devastação na própria alma, se é que um dia tivera uma; a
Dionísio: multiplicava-se em sofisticadas faces... Crono chorou. Mas as lágrimas do tempo foram barradas antes de
tocarem os joelhos de Gaia.
Mais tarde, muito
tarde, quando a sombra da árvore seca se recolhera, Gaia descobriu que um menino tentara aceitar o desafio. Tentara,
mas seu pequeno corpo fora encontrado em uma praia qualquer, com o rosto ainda
voltado para o chão que não o recebera.
Ivane Laurete Perotti