VERGONHA
NO
CALOR DE UM TEXTO
-
eu sofro de vergonha alheia -
"As pessoas
precisam de três coisas: prudência no ânimo, silêncio na língua e vergonha na
cara." Sócrates
Após as tormentas do verbo, as barricadas da
liberdade alcançam as frases. Mais uma madrugada de lamentos não ouvidos varrem
os fatos para debaixo do tapete puído, da cama sem lastro e da janela sem vidro.
Houve um tempo em que uma canção levava o nome da música na moldura da pauta:
quadros de vozes e instrumentos a favor da esperança. Houve um tempo em que sonhar
não era um evento psiquiátrico e valia dizer por onde andava a vontade de fazer
da felicidade um momento real - mesmo
que por míseros segundos de volátil solidez. Houve um tempo em que os heróis
plantavam e colhiam a luta diária de manterem-se em pé sobre as dificuldades da
própria história. Houve um tempo em que a história não era o resultado de tantos
e tão portentosos jogos de manipulação: teoria da conspiração? Teoria da
exterminação !
Então, o que deu
errado?
Não
sei..., parece justo e sábio argumentar em
legalizado estado de negação; mas, envergonho-me pela desconfiança em sabê-lo, posto
estar diante de retorcidos acontecimentos cuja ignorância alimentada pelo desespero transforma-nos em joguetes de pouca
monta. "Assim foi, assim será...",
disse-me a senhora na fila de um grande Pronto-Socorro conveniado com um dos
planos de saúde mais caros - para os assegurados, obviamente DESASSEGURADOS! - deste
país de braguilha aberta. Cambaleava a senhora bem mais do que eu, ambas em
estado de sintomática dengue e as
suas escabrosas manifestações. Tanto crescia a fila da epidemia, quanto descia
ladeira abaixo o atendimento no qual AINDA se colocava fé: fé e necessidade. "
Que encontras de mais humano? Poupar a
vergonha de alguém." ( Friedrich Nietzsche. Que vergonha é essa que sentimos, quando se
procura um profissional de acordo com a sua legítima formação e o que
encontramos nos deixa em estado de lastimável prostração? Que mercado da doença é este
que não põe medida na moeda de troca e a libera ao uso e abuso do descaso? Tabelas
de atendimento não atendem mais ao pague
o que leva: volta-se para casa sem o que se pagou e ainda,
de crédito, carrega-se o estupor assintomático: a humilhação e o desrespeito!
Ambos crescem na voluptuosa fecundidade do
Aedes aegypti alimentado no calor de todas as
estatísticas mercadológicas. Quantas picadas são necessárias para acordarmos?
Sim, sinto vergonha alheia... e assumo
senti-la em minha pele, em meus olhos e na alma que teima habitar-me por tempo
indeterminado. Sinto vergonha por não conhecer mais a medida interna de minha
indignação e a manifestação externa de meu descompasso. Sinto vergonha
acompanhada de uma dor sem nome, algo que teima em lembrar-me que ser heroico
não prescinde de largos movimentos, que somos todos, absolutamente todos perecíveis... sim, esta é a
palavra deslocada na frase das tormentas. Escolho-a a dedos tortos:
p-e-r-e-c-í-v-e-i-s ! Somos falhos, certo. Mas a epidemia não é a dengue, como
tanto repetimos. A epidemia é a política da desvalidação da humanidade. Nem o
vírus Zika dará conta de nossa violenta transformação em zumbis da dignidade,
em homens sem vergonha na face - face? sem
vergonha na cara, na alma, nos olhos - corremos para o podium da descaração, do descaso, da brutalidade gratuita, da lei
do mais rápido. Diria um infeliz e antigo conhecido meu: " Essa é a lei da natureza: sobrevive o mais
forte...ao fogo, os demais!".
Ao fogo do esquecimento, ao fogo do descuido, ao fogo do demérito, ao fogo da
humilhação...à morte sem digna atenção. Talvez a natureza tenha leis inflexíveis
por conta do universo no qual precedem a existência das coisas e a sucessão dos
seres ! Mas, aos animais selvagens ainda há o crédito da irracionalidade. Ainda, posto estarem a sinalizar a evolução de
sentimentos e emoções que em nós rareia e desaparece.
Sinto vergonha....
e morre em mim a vontade poética de salvar este texto da desgraça verbal.
Às barricadas da
verdade, que não se descubram obstruídas pelos pontos e vírgulas, eternamente
presentes nas histórias que têm dois lados: dois? Penso na matemática das
ilusões e imagino o novo prédio do seguro-saúde que teimo em pagar com a
esperança de que seja FUNCIONAL. E os atendimentos públicos? Sem palavras...
Para a escuridão de um único texto, basta começar por onde termino: morre em
penúria o povo deste país de lobos esfomeados.
Peço desculpas retóricas aos Canis lupus,
naturalmente fora do espectro desta
metáfora triste!
O que deu errado?
Ivane
Laurete Perotti