TIJOLOS DE VÁRIAS MÃOS
CIRANDA
DE PEDRA-POMES
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os cavos tijolos da democracia -
“A única arma para melhorar o
planeta é a Educação com ética. Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor da
pele, por sua origem, ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas
precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.” Nelson
Mandela
Iniciava o dia antes do sol
beijar as orelhas do horizonte. Lava-se para deixar os sonhos por debaixo do
travesseiro desgastado. Tantos depósitos ali jaziam que, em sua enxerga, conjuravam-se
antigas mortalhas: catre das vontades.
Fazia sem ver o caminho para a rua e na rua, não via o caminho que avançava: chegar
ao destino era ordem ditada do estômago
para os comandos motores e deles para o ir e o voltar sobre os passos de sempre
e sempre, amém! Bocas de barrigas vazias aguardavam a farinha de tantas lombrigas e,
sem as letras da escola, cabia-lhe dar à sebosa carta a leitura da não
alforria. À mão, um pedaço de púmice tão esponjosamente gasto quanto os gases
de seu intestino. O naco da pedra vulcânica comia-lhe os calos das mãos, da
alma, da identidade, enquanto roía pelas beiradas a ansiedade de mais um
trabalho /des/garantido: cidadão livre, concorria com a ciranda de outras
pedras.
Seu
nome: Alfabeto. Ingênua ironia da mãe que conhecera Adalbertos, Fabricianos,
Beneditos e Tibúrcios , amigos da vida
acantoada, uma vez que a solidão não se dá a conhecer de cara lavada e as faces
das fomes escondem o gosto pela destruição da alma. Ia. Feito o dia que traçava
o destino de algumas horas. E no ponto das quatro esquinas, armou-se diante do
farol: um sinal e chegava-lhe a vez de, por variações de segundos, oferecer as
mercadorias de viagem urbana. Verde: hora de saltar para o meio-fio e sustentar
às costas o sol de abril enquanto protegia com a sombra do corpo, as balas de
papel duvidoso. Vermelho: tempo de bater nos vidros escuros dos veículos
obrigados à parada crucial. Fechados! Fechados! Fechados! Verde para o suor que
escorria da testa, dos braços e lhe grudava a velha camisa ao corpo .
Seu apelido: Beto. Resultado
variável da lei de menor esforço e das
brincadeiras soltas entre as crianças dos primeiros anos. Poucos anos até
entender que ser criança era estar na
infância mal nutrida do outro lado de um muro intransponível. Nasceu com a cor
do ébano e dele herdou a resistência por tempo menor. A nobreza não lhe dera o
lugar da graça, e como tantos outros, resignou-se à cadência das pedras que
rolam morro abaixo. Não queria ser pedra, queria ser gente. Mas não entendia da
alquimia social que provoca borbulhas no caldeirão das diferenças. Nem dos
tijolos ocos que lhe sustentavam o espaço da cidadania inexistente. Ainda
assim, rolava. Rolava os dedos contra a pedra-pomes como se lhe então clareasse
a pele e as ideias. Trabalhado por outros momentos, quando tivera um emprego de
carregador, servente de obras, jardineiro, limpador de qualquer coisa, agora
não sonhava. Ia e voltava das quatro esquinas disputadas no adiantado das
madrugadas escuras. Voltava. A farinha esperaria por mais um dia. As
mercadorias também retornavam e não se serviriam à mesa das fomes acumuladas,
pois as madrugadas colavam-se umas às outras: a necessidade encurtava o espaço
das vendas. Vendas? Não vendera. Os vidros escuros guardavam o medo das pessoas
e a indiferença do muro levantado.
No caminho de volta, um
tijolo cavo encurtou-lhe a vida. Um tijolo em muitas mãos. Mãos forjadas no
preconceito, na vilania dos julgamentos desordenados: precipício de uma
sociedade incivilizada.
Alfabeto morreu como
veio ao mundo: sem a leitura em voz alta de sua carta de cidadania.
* Texto baseado em
fatos reais; nome extraído do obituário: CNF/Brasil.
Ivane Laurete Perotti