TONTURAS NARRATIVAS
UM CONTO, PARA AMANSAR UM TONTO
O CARVOEIRO
FANTASMA
O suor escorria
pelo rosto. Sobre os ombros, uma leva de
madeira. Pulsavam suspiros na cacunda carregada. Anos e anos
derrubando árvores conferiram-lhe um privilégio nefasto: ouvia o choro daqueles
corpos. Os restos de seiva queimavam a pele. A floresta rugia lamentos diante do
fogo das necessidades.Algumas árvores dobravam em idade a sua própria. Não aprendera
as letras. Não tinha leitura. Se a vida lhe dera oportunidades não as tomara
para si. Trabalhava para a morte da floresta.Troncos e galhos alimentavam o
forno de barro. Quando cheio de madeira viva e chorosa, barreava-se a boca com terra
molhada. Um respiradouro marcava o lugar por onde o fogo alimentaria sua
vontade e cuspiria a fumaça pesada. Fogo brabo.Culpado, o corpo dobrava-se no
esforço para não vergar sob o peso que vinha de dentro. Os fantasmas das
árvores rodeavam-no sem tréguas. Via e ouvia. Um dia depois do outro. Dias sem
começo nem fim. As marcas de sua vida estavam todas ali, agarradas aos troncos
que se queimavam e aos copos da branquinha.
Bebia sim. Como todos os outros. Bebia ao cair da noite esperando não amanhecer
o dia. Mas a vida era teimosa. Acordava ainda mais iracundo a repetir-se quase
vivo. Doía a alma de dentro para fora.
Em dias de
muito vento, sabia que um jeito ou de outro alguém tentaria segurar a farinha no bojo das mãos. Era
aviso de rezinga, de briga certa. Tal
como acontecera naquela noite de calor dobrado.Reunira-se com os demais
carvoeiros para beber da pinga forte.
Começo de uma despedida sem volta. A cachaça pesada descera rápido para o
estômago e abrira buracos escuros na cabeça dos homens cansados. A desavença
iniciou do jeito que sempre inicia: por qualquer motivo sem razão. Os facões
saltaram em meio a conversa desconexa: carvoeiros tombaram sobre o chão imundo.
O sangue voltou para o ventre da terra levando a alma de dois homens.
Esgotava-se ali a caminhada de cada um deles. Tempo perdido na floresta, tempo
perdido na vida encruada no barreado
que consumia os que ainda estavam em pé. Quem estava em pé naquele acampamento
dos infernos?
O dia não
amanheceu diferente, mas engoliu a noite em tragos ardidos que agora queimavam
a boca do estômago. Não se faz velório em terra de homens perdidos.Embaixo de
muitos palmos de terra, devolve-se o corpo para o lugar de origem. Lá estavam
agora aqueles que um dia tinham sido companheiros de queimada. O fogo pedia alimento.
Outras árvores arregaçavam suas raízes enquanto ele escutava os pedindo por um
socorro que jamais chegaria. Ninguém poderia ser salvo. A floresta agonizava
deixando as feridas abertas para qualquer um ver. Ele via. Via e ouvia. Sua
cabeça latejava desde a noite anterior. A cachaça, mais o cheiro do sangue
derramado, afetavam os pensamentos.Variava
das ideias. Não queria barrear o
forno recém-construído. Desejava deitar o corpo para não mais levantar.
No tosco
acampamento, carvoeiros prestavam silêncio aos homens mortos. Ainda beberiam os
defuntos, mas só depois de alimentar as bocas fumegantes dos fornos abobadados. Foi um dia mais escuro do que costumavam ser
escuros todos os dias. À hora da beberagem, os nomes dos carvoeiros saltavam de boca em
boca junto com mais um trago para a despedida derradeira. A escuridão do dia
abria-se para aumentar a escuridão da noite. Bebiam os companheiros. Era pau e pedra. A caninha descia feito veneno e subia comendo a razão. Anuviava os olhos que se perdiam por
outros lugares, outras florestas, ou sabe-se lá por onde o sujeito andara. A
cachaça não era amiga dos segredos, mas facilitava a desconfiança sobre o lugar
onde eram escondidos. Conhecia o sentimento de pisar nas nuvens e deixar a
cabeça pender sobre o peito. Era assim que a vida o levava. Era assim que
levava a vida!
Ivane
Laurete Perotti