IDOS

RETRATOS DE UMA TRAVESSIA


“É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos." Fernando Pessoa


                                     No bolso, um bilhete macerado guardava o sonho. Manchas de esperas às portas das estações e dos tempos idos comiam as bordas do papel envelhecido.
                                     No rosto, um par de olhos fechava-se ao sol do meio-dia. Dilatavam-se as pupilas da vontade no anteparo da saudade volumosa. Pendiam os braços ao longo do corpo, feito muletas do pensamento tardio. Tardava-lhe a vida ou  tardava-se na vida o empréstimo  da compreensão?  Caminhava sobre palavras que não cediam lugar aos quadros pintados: imagina criar entre pinceladas de argamassa fria. Era fria a calçada de seus movimentos. Eram vivos os quadros da alma inquieta. E purgavam lamentos as feridas em ciclos de inconclusão. Sofria de incompletude crônica e nela fundia-se em temor aceso: mantê-la e manter-se servia de mantra para lembrar a obtusa indecisão.
                                     Quando guardara o bilhete nas dobras do bolso fino? Sentia-lhe a urgência do uso. O peso da validade materializava-se em olhadelas às escondidas: nenhuma data no lugar do tempo marcado em anos. Nenhum sinal do momento certo para deixar-se ir.  Nenhuma razão para ficar com a bagagem à mão enquanto ouvia os passos apressados passarem-lhe à frente, ao lado, acima e  em continuada carreira e vocação.
                                   Nascera sem vocação para decidir? Nascera sob os ventos da liberdade, mas agarrava-se às dobras das nuvens que não lhe garantiam a travessia. Nuvens não servem à segurança dos presságios, e se colocara à chuva e à sombra de muitas delas. Lágrimas lhe foram secas por mãos e brisas de lugares diferentes e de lugar algum. Enchera-se de coragem tantas vezes quantas a vira esvaziar-se em medo e carestia. Da margem das possibilidades, soprava-lhe o fôlego do pensamento clivado em promessas: quadros bizantinos, imagens de um futuro abstrato, figuras de um passado oleoso, paisagens bucólicas, molduras de madeira seca em fogo de chão. Tintas da sintaxe e da geometria traçavam frases sem melodia. Nas as ouvia? Sibilavam sons entre os retratos guardados no espaço conceitual , residência do bilhete puído e das figurações escondidas do mundo real.  Pensava dizer o que dizia pensando, e desconhecia o despudor das fantasias lexicais: "A palavra foi dada ao homem para explicar os seus pensamentos, e assim como os pensamentos são os retratos das coisas, da mesma forma as nossas palavras são retratos dos nossos pensamentos."( Molière)
                                 Uma passagem é um rito de multiplicação: os significados de ir e voltar conversam entre si e não se definem na estática dos movimento. Quem vai retorna, quem retorna nunca foi, quem foi não saiu do lugar. E vai chegando quem jamais partiu.
                                  Aluga-se um lugar na vida. Plantar  jardins é escolha para fora dos telhados de segurança: a dúvida é adubo que tanto faz crescer quanto mata a semente nas mãos do sementeiro descuidado. Tarja preta para a vontade em bancos de cimento.
                                 No bolso de todos os homens, os bilhetes esquecidos ainda movimentam o trem nas estações do amadurecimento: ações ao portador. E as ações - salvo a assepsia dos exageros - respingam tintas no tapete de boas-idas
                                  Adelante!

Ivane Laurete Perotti




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