UMA QUESTÃO DE ESCOLHA
QUANDO
A SOLIDARIEDADE TRAZ À TONA O HERÓI DESCONHECIDO
- ações de bondade não são ensinadas:
aprende-se na humana vontade de ser -
"Permita-se rir e
conhecer outros corações. Aprenda a viver, aprenda a amar as pessoas com
solidariedade, aprenda a fazer coisas boas, aprenda a ajudar os outros, aprenda
a viver sua própria vida.” Mário Quintana
Final de um dia de trabalho para
mim. Início de trabalho para o motorista Paulo
Afonso e o trocador José da Costa.
Bastava a ambos deixarem-me diante do ponto solicitado. Faz parte do acordo entre
passageiros e condutores. Cada qual com o seu itinerário e vicissitudes a
repetirem-se diariamente. Não! Não contavam as mazelas do cotidiano que, diante
do infeliz e triste episódio - já comum entre nós como se estivesse determinado
aceitarmos a violência de cada dia -, dois homens pautassem a vida pela
competência profissional e seguissem a bússola da solidariedade. Paulo Afonso e José da Costa já haviam cumprido a parte do acordo no trânsito da
vida: poderia o motorista Paulo recolocar
o ônibus em marcha, pois há sempre um
trajeto a percorrer, um tempo para dar
conta e outros tantos passageiros para atender. Poderia, mas não o fez. Paulo e José, competentes, prestavam atenção ao trabalho que desempenhavam
sem deixar de lado a grandeza de espírito e a humana presença da bondade.
Competência, bondade e prestimosa vontade, salvaram-me de uma ação que não
desejo descrever. Basta, para mim, dizer do que é bom e grande. Cansei de ver
as tragédias amontoarem-se diante de olhos opacos, acostumados a não mais se
indignarem, a preservarem-se na silenciosa e temerosa apatia. Cansei da força
de personagens que fizeram da história humana uma fonte de sangue e dor e ainda
permeiam ações cotidianas sem que percebamos as semelhanças da ideologia
supostamente indetectável: "Humanitarismo
é a expressão da estupidez ..."(Adolf Hitler).
Nos vincos da
autopreservação - e nada se diz aqui em
contrário a este princípio natural e espontâneo ! - prevalece a ordem da
cegueira social. Desde que não aconteça
comigo, nada posso fazer. Se tiver de acontecer, acontece e ponto final. Se for
roubado, assaltado, sequestrado, você é o culpado pelas "pistas" que
deu ao larápio. Seja esperto, não se envolva. Prefiro um covarde vivo, a um
herói morto...! E o discurso cria a
máscara da não dor, da não participação, como se usando-a, permanecêssemos
protegidos e intocáveis. Triste discurso da destituição humana. Triste, mas não
forte o suficiente para influenciar dois homens, Paulo Afonso e José da Costa que
não estariam errados se tivessem deixado-me à mercê da própria sorte. Não
estariam errados. Apenas e tão somente estariam cumprindo a parte final do
contrato e seguindo o rumo da noite. Ambos, sem saírem da rota obrigatória,
agiram por conta e risco tomando para si a proteção de uma vida estranha: a
minha!
Por trás de portas que se abrem e fecham no
ônibus que transita diariamente em Belo Horizonte, dois grandes homens, dois
heróis de inquestionável conduta, driblam as agonias de quem vive na selva
cosmopolita. Não existem mais lugares seguros, falam as vozes dos que se
entendem entendidos: do campo à
cidade, as trilhas da violência abrem buracos. Sim, é um fato. Mas também é
fato que seres humanos estão em ambos os lados; o que nos torna sujeitos da violência ou sujeitos à ela não é uma questão
semântica. A violência não é um conceito
perdido entre boatos: é uma realidade a ser enfrentada com decidida vontade
política.
Ao Paulo Afonso e ao José da Costa, dois heróis de um cotidiano particular, o lugar de
respeito, exemplo e gratidão.
" A gratidão é a memória do coração." ( Antístenes,
filósofo grego).
Ivane Laurete Perotti