CONEXÕES INTERROMPIDAS




CEGUEIRA EXISTENCIAL
- o silêncio dos sentidos desbastados -


“Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é só um dia mais.” José Saramago

                                       A carícia do tempo passa ao largo das memórias. Trancafiadas no sótão do alheamento desdobram-se em sombras de esquecimento. Desbotados resquícios de fatos e sentimentos empilham-se empoeirados no chão de tábuas. Gastas madeiras a servirem de base para o escuro berço das emoções. No enterro dos fatos migram vozes de arrependimento e felicidade: ambas medidas em algoritmos de sintéticas comparações.
                                      Quando, em relação a quem se pode comparar o rol de emoções, ganhos, perdas e sentimentos? Nunca! Deveria ser a única resposta possível. Nunca deveríamos aceitar o efeito dos modelos impostos na roda dos espelhos alheios: em havendo uma face diante do espelho, espelha-se ela mesma... quando livre das vozes que rodeiam espectros de padrões assimilados.
                                      Quando muito se torna pouco? Quando o mito da conquista desenha-se no vão aberto em terras estrangeiras. Forasteiros de si mesmos, caminhamos por trilhas abertas em terrenos que pertencem ao enredo de histórias massificadas: mais e mais e mais escravizam sentimentos próprios, calam perguntas que jamais virão à luz das reflexões. Refletir é dar conta dos sentimentos que morrem esquecidos dentro das gavetas soterradas de metas e mitos: a felicidade só alcança quem vence a luta; a luta é um dever de quem busca a vitória; as conquistas chegam àqueles que não param no meio do caminho – mesmo que o meio seja o caminho daqueles que param.
                                      As carícias do tempo enroscam-se em memórias diluídas e presentes não percebidos. O agora é o resultado de estratégias regidas por compulsiva inconsciência. Melhor não sentir, não perceber, não refletir, não quebrar os modelos de exigente comparação impostos pela sujeição dos sonhos próprios. Sonhos próprios... por onde andam? Sonhar virou mercadoria de consumo programado: eu sonho, você sonha, nós sonhamos sonhos de fora para dentro. Não são sonhos: são desbastes da vontade desvitalizada de si mesma. “O espelho e os sonhos são coisas semelhantes, é como a imagem do homem diante de si próprio.” (José Saramago)
                         Não sonhamos mais, repetimos jargões externos comandados pela voluptuosa morte da alteridade: eu sou autor de minha história e nela, o protagonista inscreve-se por pautas de escolhas singulares. Singulares? Que tipo de singularidade carregamos nessa mala de conceitos padronizados? Travestimo-nos com uniformes costurados no cárcere da individualidade.
                       Bandeiras pesam. E pesam mais quanto mais a deflagramos em causas pelas quais não optamos. Decidir é permitir ao tempo acariciar o presente e deixar que do sótão se espane as memórias, justos pertences de quem vive a caminhada dos sonhos construídos sobre terra firme. “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória” (José Saramago)
                         Apenas mais um dia não marca o calendário da existência. Um dia a mais faz a existência brilhar, põe fogo na caverna escura da inconsciência, abre as janelas das emoções e desentulha o sótão das memórias: boas ou não, são memórias de vida cujas escolhas podem ser refeitas. Os fatos moram no passado. As memórias fazem cócegas no presente: as carícias do tempo também sofrem de saudade!

Ivane Laurete Perotti

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