UMA FLOR NO ESPELHO

NA PALMA DA MÃO 
 
- não se ausculta o coração da alma humana, mas se reconhece a sua natureza -
 
                                                        “Doer, dói sempre. Só não dói depois de morto.
                                                         Porque a vida toda é uma dor.” Rachel de Queiroz
 
Adormecido, o tempo não cobra razão. No banco estreito, o ancião espera entender a passagem que se abre: lenta, preguiçosa. Quase tardio, o olhar sobre a rua encontra um espelho. Sem moldura, craquelado, lembra a pele que recobre a vida fugidia: vem e vai sobre trilhos de acontecimentos. O reflexo não se dá a conhecer. Vaga na dormência do tempo e na profusão das expectativas enterradas a esmo: aqui, ali, acolá... velas apagam a si mesmas enquanto o homem espera entender a quantidade do que é, por si só, imaterial.
Por que dorme o tempo? Em que balanço encontra colo e melodia? Adormecido, parece deixar a passagem abrir-se legitimamente vagarosa. Na lentidão, o poder de projetar no espelho os olhares para longe de si. Quem via o que fora não via o que era: olha para frente ou para trás, ilusão de longo alcance. Quem deseja faz-se estar entre os bulbos das dálias em promessa de flor. Flor escamosa, perfeita imagem para os olhos grudados no espelho difuso. “Falam que o tempo apaga tudo. Tempo não apaga, tempo adormece...” (Rachel de Queiroz).
E então, o ancião ri de sua estulta vontade: mergulhar no espelho e colher a dália final. Aquela que se transformara no conjunto de pétalas em penca colorida como se estufada pela natureza caprichosa. Essa mesma! Divina e terrena flor que nascera sem dar trabalho. Colheria a dama robusta e a envolveria no papel da existência. Um convite para o baile na pista do tempo indolente. Quebrantado tempo que se deixa acreditar em fresca siesta: cochilo programado no calor da vida a pino. Um parêntese indispensável às dobradiças que comandam os sonhos por sobre as pernas de pau. Siesta do temporis... cochilo lírico! “Cada coisa tem sua hora e cada hora o seu cuidado.” (Rachel de Queiroz).
Do espelho craquelado, uma pétala espia curiosa. Deseja estender-se até os olhos que a admiram. A rua permanece vazia e o tempo não dá sinal de intromissão: espaço perfeito para o devir mesclado em natural fantasia. Primeiro, o leve perfume: contato de delicada comunicação. Segundo, o roçar da brisa que balança a saudade e a pétala mais nova, pequeno tecido colorido entre o miolo esbranquiçado e a massa distinta das outras peças da corola. Dália crescida. Dália madura para a travessia sem volta. “... quem pode manter, num espelho, uma imagem que fugiu?” (Rachel de Queiroz). Terceiro, o toque do insustentável cortejo: definitiva parceria!
Assim, mais do que a tempo, o tempo sanou a vontade de restabelecer a ordem da dor, desordem da flor. O homem se deixara ficar no banco para um próximo descanso. Descanso? Quem disse que saudade não dói?
Uma pétala entre o vão do espelho e o vão da vida deixou-se ficar para manter o tempo em seu devido lugar: intocável e submisso tempo de nascer e adormecer. 
Ivane Laurete Perotti

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