ASAS
RUDIMENTOS
DE UMA ANALOGIA
-
pássaros ausentes -
“Amar os outros é a única salvação individual
que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em
troca.” Clarice Lispector
Para quando
se deixar de justificar a sóbria condução de nossas resistências, talvez, por
debaixo das portas trancafiadas, infiltre-se uma nesga de fantasia.
Considerando-se que as metáforas façam parte da vida e as invenções sejam suas
respectivas provas, qualquer porta, por mais inconsistente que seja, manifesta
uma ideia de lados: dentro e fora
douram a face de uma só maçaneta.
Com “a” chave nas mãos, abrir
e fechar portas são performances
dependentes de perspectivas e motivações: não suprimem lados! Deve ser assim – não?
– quando nossos sentimentos criam asas; quando escolhemos uma parceria; quando
defendemos uma tese; quando escolhemos uma agremiação e quando,
inadvertidamente, ficamos a ver navios. Longe do adágio popular, ver navios é um
chamado aos versos, ao saudosismo, à arte da travessia, à espera de um amor ou
à partida dele/deles (desde que não se sucumba à precariedade das condições de
trabalho dos estivadores, funcionários portuários et alii, et cetera e...).
Mas quem diz que a poesia não desnuda a vida? A vida desnuda a poesia... por
fim, a nudez faz parte dos lados de qualquer porta.
Navios
e portas têm tanto em comum quanto o amor e os pássaros. Os dois primeiros
criam distâncias, sustentam-se a partir de outras estruturas e desafiam aqueles
que decidem bater em retirada: ir ou
ficar termina sempre – sempre? - em
derrocada democrática. Quem foi di/fama, quem fica re/clama. Ousadias
morfológicas.
A
segunda dupla, o amor e os pássaros, identificam-se pela valentia nos
arremessos; voam alto; apresentam dificuldades em descortinar os predadores;
criam asas. “Asas” são metáforas robustas
aplicáveis ao campo das figuras de linguagem e nem mesmo os pássaros podem
alcançar os horizontes de suas possibilidades significativas. Mas, começa por
aí o limiar de alguns lados: o fenômeno do amor postula dominar a própria
realidade e desconsidera que, asas, portas e navios ameaçam-lhe a natureza volitiva.
Os pássaros, por herança genética, não gostam de portas – até onde se sabe!
Navios não atracam em qualquer cais, mas obedecem à força das correntes
marítimas e podem, infelizmente, naufragar em terra seca. Sic! As portas, subtraídas de um lugar único, tendem para o lado
com maior pressão, ou se voltam para onde o vento sopra, ou sucumbem,
carcomidas, pela inércia de qualquer chamado.
Para quando
e se deixarmos de justificar a
sobriedade de nossas convicções, talvez, quem sabe, possamos lembrar da nesga
de luz que se infiltrou por debaixo da porta.
A nesga não tinha lado. A porta estava nua. Os pássaros nasceram livres.
Os navios flutuam em águas profundas.
E , de qualquer modo, a poetisa estava certa: “... viver ultrapassa qualquer entendimento.” ( Clarice Lispector).
Ivane
Laurete Perotti