COVAS
JAZIGOS
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a indiferença cava túmulos –
Resoluto, o homem
construiu um abrigo. Sem janelas, para
ganhar privacidade. Sem portas, para garantir segurança. Cobriu-o com as formas
de seu pensamento. Por uma estreita brecha espiava o entorno. Não via o sol
beliscar o horizonte. Não delineava as sombras da lua. Mas via o céu: uma copa
formada por gases e espaços inócuos. Percebia vultos: indistintos.
Crendo-se
abrigado, o homem resumiu-se em aforismos. Recortava notícias e com elas forrava as
paredes do abrigo. Escutava vozes e ouvia discursos simétricos. Alimentava-se
de certezas particulares. Extinguiu o senso comum à pena dos costumes
repetidos. Um dia de cada vez e cada vez o mesmo dia.
Tanto fez que, do alto de suas crenças, tornou-se
indiferente. Indiferente é um
adjetivo que escorrega pelo Latim indicando apatia, insensibilidade às coisas e
pessoas em geral; aquele que está fora, afastado de... O homem abrigado escolhera dobrar-se para
dentro das paredes alimentadas pela redundância.
Eis que, entre os
acontecimentos que fogem às regras e aos controles instituídos, o faz de conta cobrou o pedágio das carochas – carapuças de papel colocadas na
cabeça das crianças para impingir-lhes castigo (evento da escola antiga e
apenas dela, óbvio!). Cobrou juros, dividendos e considerandos. O homem rugiu argumentos pessoalizados. No tecido de
suas palavras emaranharam-se desculpas e motivações: célebres frases de apoio e
domínio discutível. Declinou da autoria: mergulhou nas crenças que o
autorizaram, por tanto tempo, a submergir na letargia.
No auge da
inesperada inquietação, improvisou algumas buscas: existiriam outros abrigos?
Onde estariam os outros homens que comungavam na fé dos aforismos? Por sorte,
não estaria sozinho nos retalhos daquela vida de afastamento. Com sorte... não
estava!
Bastou que o homem abrigado acenasse com uma
flâmula fininha, um galhardete qualquer, para uma multidão povoar os seus
interesses. Eram outros indiferentes. Homens e mulheres que primavam pela
tranquila insensibilidade e, resolutos, haviam criado linguagens específicas,
construído barricadas ideológicas e políticas de abastecimento próprio. Tudo
embasado no mais profundo e soberano discurso de autopreservação: desejo inato
a todo o ser vivo. Um direito inalienável?
Perguntas não faziam
parte daqueles pacotes de convencimento.
Mas, o imbróglio se instalou: a notoriedade da causa particular tinha o seu
espaço de lei. Quem usurparia daqueles
sujeitos o direito de existir em
estado de alienação? Usurpar é um crime de posse fraudulenta, mesmo em se considerando
as estratégias das guerras e das revoluções. E foi assim que, no era uma vez do homem abrigado, as linhas
de sua escolha estabeleceram modelos. Enquanto o quiproquó dividia opiniões
e contabilizava a edificação de outros abrigos, as raízes da indiferença
alastraram-se e tomaram a forma de projeções. Na privacidade dos berços
políticos as estruturas dos estados de
direito mantiveram, intocáveis, o objeto da educação para o trânsito da
vida: tudo passa!
A redundância das
histórias contadas não se esconde nos finais fabulescos. Dos abrigos da
letargia às ações de resistência, as personagens atravessam fronteiras de
sobrevivência: tudo passa ao longe
das covas sem autoria. Eis uma das
possíveis razões para “os contos da carochinha” reescreverem-se, verossímeis, sob as espessas camadas da contemporaneidade:
o que passa volta em figurinos
adaptados!
Ivane
Laurete Perotti