A educação é o índice da vontade política de uma nação
A EDUCAÇÃO É O ÍNDICE DA VONTADE POLÍTICA DE UMA
NAÇÃO
- as palavras das coisas e as coisas das palavras –
...eu precisava ter essa saudade comportada.
Paulo Freire
Ventos e folhas
varreram o quintal com o fôlego da segunda-feira. Meu primeiro mundo foi o quintal de minha casa [...]. (FREIRE,
2005, p. 14). Separadas as folhas e os lixos recicláveis, etiquetei as sacolas.
Acredito colaborar com o trabalho dos carregadores e acreditava facilitar o
movimento dos catadores de materiais reutilizáveis.
Erro. Diante de mim,
com o odor de muitas fomes e de outras indignidades, o aluno que jamais terei
abre as sacolas recém-organizadas.
_ Bom dia!
_ ...
_ Essas sacolas não têm
recicláveis. Posso ajudar?
Os olhos esgazeados do
menino bateram-me deveres. Cambaleei. Ele se afastou. Por segundos, lutamos a
mesma luta. Até que a guerra do menino ganhou em predicados de ausências. Nele,
o medo vencia as fomes. Em mim, a vergonha apenas ultrapassava os limites. As palavras
de indicação coladas às sacolas de lixo tornaram-se nada. O ar em torno de nós
enfarruscou-se como em dia de muita fúria no céu dos anjos cansados. O odor do
abandono era maior do que, em breve, será o purgatório da sociedade consciente.
_ ...
_ Vê a etiqueta? –
perguntei, para ganhar tempo e coragem. [...]
era preciso estabelecer limites ao nosso medo. No fundo, experimentava as
primeiras tentativas de educação de meu medo, sem o que não criamos a coragem. (FREIRE,
2005, p. 17). Não temia o menino. Temia a mim e o que não fazia. Temia tocar
a dor em seus olhos, as marcas em sua pele ferida, a crueza que lhe devastava a
infância. Temia o braço de meus silêncios.
_ Eu...eu posso saber o
que você faz aqui sozinho? Assim tão cedo?
Os olhos que matavam a
minha presunção de partilha e cidadania eram os mesmos olhos que me pediam
ação. Quais ações lhe abrandariam a vida? Dariam dignidade? Quais palavras eu
poderia emprestar-lhe? Doar-lhe? O chão
foi o meu quadro-negro. Gravetos, o meu giz. (FREIRE, 2005, p. 19)
_ Os...os seus pais
estão aqui? Aqui perto?
_ ... a ... a senhora
vai me bater?
Desejei que o
firmamento descesse pragas. Quis que todas as pedras fossem atiradas de uma só
vez sobre as desumanidades. Despedi-me de minhas desculpas.
_ Não! Nunca! Não...não
faria isso! Só fiquei preocupada, você é muito pequeno para estar na rua,
sozinho.
_ Eu moro sozinho...
_ Onde? – engoli uma
tentativa de sorriso e pensei nas decisões políticas resumidas ali, em poucos
segundos.
_ Onde dá...
Se
tudo o que existe de bom no mundo deveria ser repartido entre todas as pessoas
do Mundo, por que é que algumas pessoas têm tantas coisas e as outras têm tão
pouco? (FREIRE, 2005, p.31)
_ E, e os seus pais? -
a minha garganta suava o amargor das palavras insistentes.
Antes que qualquer som
beliscasse a sua boca, o menino correu. Correu. Correu rua afora. Parou na
esquina para olhar-me. Depois, caminhou como aquele que já sabe para quem foi
feita a vara. Desceu a rua, desceu a vida e me deixou ficar ali, na calçada,
diante das sacolas de lixo remexidas, ridiculamente etiquetadas, desejando
acordar.
O menino não tinha
casa. [...] porque tanta gente não quer
repartir o pão com a gente? (FREIRE,
2005, p. 32). De quantas fomes sofria? Participando
do mundo dos que comiam, mesmo que pouco comêssemos, participávamos também do
mundo dos que não comiam, mesmo que comêssemos mais do que eles [...].
(FREIRE, 2005, p. 27).
A segunda-feira
cobriu-se com os olhos de uma criança, um exilado involuntário. Ele e outros
tantos são, vertiginosa e vergonhosamente, desabrigados pelas decisões políticas.
São objetos assujeitados de um sistema que não paga a pena. Crescem nas esquinas da vida, enchem praças,
tomam avenidas e permanecem invisíveis. Os exilados das coisas do mundo, exilam-se
das palavras das coisas. As coisas das palavras não lhes chegam.
Deliberadamente, a educação para a vida lhes é negada.
Olho agora o quintal
das folhas. Com o vento vem a vontade de viver a saudade de Freire, em
Freire... descontroladamente! Procuro o menino. Encontro um arquétipo calado.
REFERÊNCIA
BRANDÃO,
C.R. Paulo Freire: O menino que lia o
mundo. Uma história de pessoas, de letras e palavras. São Paulo: UNESP,
2005.
Ivane
Laurete Perotti
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