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A ESCOLA PÚBLICA
NÃO É GRATUITA
- o fôlego ácido da segregação -
E
uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiadamente
certos de nossas certezas. Paulo
Freire
Letras desgarradas
deslizam pelo chão de asfalto. Pés nus procuram coisa qualquer, qualquer coisa
entre os restos do dia. Nenhuma cor dá o tom nas faces do crepúsculo. O
entardecer, entristecido, fecha os olhos para as dores que jamais receberão uma
nota de compadecimento.
Vagam passos pela
calçada externa que ladeia a escola. Um muro de muitos tijolos aguarda o
ressonar do sol poente. Dorme, sol
radiante! Fecha os olhos para a Terra vil! Aquela que tu banhas, tem por
nome...Brasil!
Passos de insegurança
encontram a campainha pública do portão público. Dedos encarquilhados percorrem
as letras do cartaz recém-colado: NÃO HÁ VAGAS. A literacia, soberana arte das competências elitizadas, não desce ao
baile das muitas fomes. Letras órfãs sob dedos abandonados: um dueto em solfejo
à lua. Inaudível dueto de um homem sonhador.
_ Sim? O que o senhor
deseja?
_ Eu... eu quero aprendê a lê e... e ...a iscrivinhá...
na... aula dos mais veio...
_ O senhor tem
documentos?
_ Não. Tenho não, dona!
_ Hum! Então, tem que
tirar os documentos primeiro.
_ É...é qui...eu...
Fecha-se o portão. Sob o
comando de forças que não se mostram, o muro público da escola pública chora.
Derrama-se em lágrimas. Vertidas pelas mãos dos homens que carregam pás,
modelam cimento e erguem pisos capitais, as lágrimas fazem uma poça odorante.
Do pranto unificado, as lágrimas, uma a uma, esgueiram-se para tocar a sola dos
pés desnudos, cômputo das engrenagens sociais.
Letras vazias bailam à
frente dos olhos abandonados. E eles, os olhos, creem na culpa pelo passado
sombrio e afundam-se no presente esquecido. A literacia pode ser um plano de contenção, coerção, divisão, quando
não serve à construção equânime de homens livres.
Servem-se letras na contramão das demandas.
Cobram-se letras nas vias da reprodução. A
quem trabalha não calha! Não calha
pensar e usufruir, não calha
perguntar e construir. Não calha
descobrir o óbvio irrefutável: a barca que atravessa o sono do sol carrega
sonhos e vontades, mas a veleidade das informações formam marolas na
meia-luz. Sem documentos... quem é o
sujeito que se desmancha no chão?
_ Será que a gente deve
chamar a polícia?
_ A polícia?
_ Tem um homem muito
estranho sentado na frente do portão.
_ O que ele quer?
_ Quer aprender a ler,
sei lá!
_ Ele veio fazer a
matrícula?
_ Que matrícula, fofa!
Ele nem existe!
A escola pública não é
gratuita. Ela é um lugar dos direitos cobrados no trabalho de quem existe, de
quem deixou de existir e daqueles que ainda não foram identificados: os
sobreviventes da alheação. A escola pública é o verso e o anverso, tudo na
mesma soma. É a imagem na fotografia, é a ação na construção, é o horizonte
aberto... como o encontro dos oceanos com o céu. Como a faca e o queijo, como a
geleia e o pão. A escola pública paga-se com os notórios suores de suas gentes.
A escola pública nunca foi gratuita, nunca foi um favor. É um direito! Um justo
direito à expressão do homem e de seu autoconhecimento.
_ Ô dona...
_ Outra vez?
_ É qui... eu...
_ Já expliquei: tem que
ter documentos!
_ ... eu...
O portão pede perdão:
perdão pelas farpas da iliteracia. Perdão
pelas vidas domadas à ferro alfabético, perdão pela ênfase às respostas
programadas, perdão pela morte do verbo, perdão pelos sulcos silábicos, perdão
pelas letras desejadas e não distribuídas. Perdão por todas as mortes.
O sono do sol é fuga. E
a lua, também cansada, mingua diante da própria aparição. Olhos que veem não
enxergam, olhos que enxergam deixam de ver. Os astros não traçam respostas,
quiçá sublinhassem indagações. Mas diante do portão, morre aos poucos o
nascimento de uma pergunta, desfalece o princípio de um ser.
_ Que homem sem noção!
A noção perdeu-se no limbus, vertente da segregação.
Ivane Laurete Perotti https://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/a-escola-publica-nao-e-gratuita/