BASEADO EM FATOS REAIS...
VOAR
É PRECISO...
"Quero voar pra bem longe mas, hoje não dá."
( Renato Russo)
Quando
o céu tornou-se a referência mais próxima, duas mãos geladas atravessaram o
espaço inaudito da proximidade. Íntimos? Não, com certeza, não! Para além dos
bancos da aeronave, outros mundos os separavam:
ela carregava um sinal de pertencimento
redondamente convencional. Era casada. O que não impedia o medo de
transformar-se em suor. Voar e morrer: era o único elo a deixá-los tão próximos.
O desejo de ser um daqueles heróis que aparecem sempre e sempre
na hora certa não se manteve tempo suficiente na imaginação masculina. Ele
acreditava ver as máscaras de
oxigênio, rosáceas e emborrachadas, caindo como folhas outonais. Se bem que o
outono aludia ao amarelo dourado do anel dela, mas a cor rosa era uma ironia
velada à situação. Linda a moça! Linda e portadora do mesmo medo que o deixava
sem palavras, sem ação, sem... ah! Outra turbulência a levou para mais perto
dele. Brilhantes e rechonchudas lágrimas espocaram dos olhos verdes. Verdes
como a dor que lhe subia da pélvis, do abdômen, das pernas ou onde quer que sua
consciência corporal momentaneamente se
instalasse. Momentos de insana conjunção: ela era linda e chorava com emoção
tão feminina, tão...tão...
Medo! medo! como um gatilho automático,
acionava a escuridão pegajosa que fazia parte dos sentidos alertados: estava
voando! Saíra de seu habitat natural
para adonar-se de capacidade alheia aos limites telúricos do homo sapiens! Tantas vezes dissera a si
mesmo jamais repetir tamanha ousadia, mesmo quando as nuvens se mostravam
mansas, transparentes e nenhum ônibus poderia transportá-lo ao destino
pretendido. Santa teimosia! Ebúrnea vontade de chegar dentro do prazo máximo
para uma viagem de final de semana. Valera o calor da pescaria, a alegria da
família e agora isso: o preço da saudade cobrava-lhe em pérolas trágicas.
Pedira rezas ao avô.
O pai de seu pai rezava com singular sintonia: sabia das coisas aquele lá, e
nada lhe dissera sobre um acidente aéreo. Teria esquecido de alertá-lo? Poderia
ter-se deixado confundir entre uma oração e outra? Difícil controlar a vontade
de chorar junto com ela. Afinal, quem era aquela mulher que sofria de congênere
dor ? Linda, deixava rastros de lágrimas no rosto torturado enquanto as unhas
bem-feitas se lhe aprofundavam a carne das mãos. Das mãos dele, claro! grandes mãos jovens e
geladas servindo de espeque humano. Ai! Que desventura! Do lado de fora, o sol
teimava em contradizer os prognósticos surdamente emitidos pelos dois: sofriam
em celeste agrura!
Levado por inusitada aceitação
de seu destino, decidiu tomar conhecimento acerca daquela que o acompanhava.
Quem era? Lusitana, pois sim? Ó nuvens nunca antes trafegáveis, que caminho
traçara-se por entre os gases da atmosfera?Ninguém mais dentro daquele pássaro
oco, mecânico e chocho parecia entrever
a luta que se desdobrava desde a decolagem: ignorância abençoada pela
insensatez. Jurava solenemente encontrar uma linha terrestre que o
transportasse da próxima vez. Se esta fosse possível. Era uma vez... não! Que
as longas pernas o mantivessem sentado enquanto aguardava o desfecho final.
Sentado!
O avião taxiava deixando uma rota de
calmaria atrás de si. Os demais passageiros ignoravam a rigidez que o medo,
vivenciado em profunda comunhão, pode provocar nos membros de locomoção de um
ser humano: inenarrável!
* Este texto é dedicado ao
jovem herói ( Gui... para os íntimos) que desembarcou em Guarulhos carregando
suadas lembranças: voar é decisão para quem não teme o medo de sentir medo.
" Para
que preciso de pés quando tenho asas para voar?"
( Frida Khalo)
Texto: Ivane Laurete Perotti