GRASNAM AS GRALHAS

IMPERIOSIDADE MORAL
-  dissonâncias-
    
                                               "Vivemos em plena cultura da aparência:
                                                  o contrato de casamento
                                                  importa mais que o amor,
                                                  o funeral mais que o  morto,
                                                  as roupas mais do que o corpo
                                                   e a missa mais do que Deus."
                                                         Eduardo Galeano

                                      Ninguém ouvia o canto da gralha que entrava e saía da cabeceira volumosa. Longa fila serpenteava pela rua coberta de anúncios. Era segunda-feira e a semana já iniciara um circuito de apreensão e insegurança.
                                     Não fosse a presença da gralha este poderia ser o começo de uma narrativa como outra narrativa qualquer. Mas o grasnar da ave canora, de coloração azulada, desestabiliza a "estrutura" especulativa do texto - sempre um pretexto para o dizer. E não sei se as palavras já não cansaram do uso comum: dizer é um ato repetitivo  foneticamente formatado em discurso, ou o contrário, quando a consciência instala-se em "pinheiros"  protegidos ( esta é uma discussão causticamente desnecessária e  acadêmica já fundamentada diante do simples desejo de ouvir a gralha tão espontânea quanto bem intencionada -  a gralha, claro!). As palavras rolam de boca em boca e parecem tanto ou mais amarrotadas do que eu mesma moralmente encontro-me.  Cansei. E como não sei fazer de outro modo, tento aprender a transcrever o sentimento de inadequação frente à sabedoria da gralha e sua imperiosa capacidade de "plantar" sementes. Não sei plantar, mas gosto de observar as sementes explodirem em vitalidade aleatória: se o ambiente é propício, tanto faz se a erva é daninha ou doninha: comungo com o conceito antropocêntrico da biologia e considero a ideia de invasão uma inversão. Decidir quem ocupa o lugar de quem tem mais a ver com o objeto que define o foco da invasão  do que com a própria invasão, e escolho ficar do outro lado do muro, destituindo o muro. Daí eu apreciar os brotos e sua expressiva força de vir a "furo". E amar as gralhas que se disfarçam no azul do céu, e admirar a sagacidade com que compreendem a anatomia de nossa destrutividade  humana nem um pouco azul, nem verde, menos ainda amarela. Gralhas não levantam bandeiras,  pelo menos, para aqueles que desconhecem as lendas paranaenses.
                             Enfim, vivemos de especulações e dissonâncias, encrespadas dissonâncias que se alastram bem mais fundo do que as teorias prometem dar conta de descrever. À poesia falham as penas disfarçadas em cantos de cortejo e anúncio: quem chama quem? Folgo em não saber, inocento-me diante do espelho da ignorância administrada em gotas de rasa anestesia. Não quero perder a semente putrefata dos últimos pinheirais, mas não alcanço  terra fértil para deitá-la em tempo de plantio. Desculpas? Não, imperioso desconforto moral: enquanto eu jogo a semente de uma mão para a outra a exemplo de uma "batata quente", há quem se adiante sempre e transforme o joio na farinha que não amassa o pão. Mas o povo, com fome, vai engolindo o que se lhe cai ao prato. As aparências não enganam, mas criam uma cultura indecente de valores invertidos. Já disse: amo as gralhas, elas têm um propósito digno.

                                                   "Assovia o vento dentro de mim. Estou despido.
                                                    Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo
                                                    dono de minhas certezas,
                                                    sou minha cara contra o vento, a contravento,
                                                    e sou o vento que bate em minha cara."

                                                                  Eduardo Galeano
Ivane Laurete Perotti

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