IRA
UM
POUCO DE FICÇÃO PARA DESEXPLICAR A REALIDADE
- um conto contado para dizer do que se nos
"anuvia" os olhos e a alma -
O sol não abrira os
olhos por entre os montes, mas o pescador conhecia o ritual. Quanto mais se
adiantasse chegasse à nascente, maiores as possibilidades na armação das redes
e no levante do anzol. Gostava de acordar cedo. Era uma espécie de oração que
fazia ao despertar antes dos outros. Enchia o peito de esperança e imaginava
que aquilo ali era passageiro. Penúria rodeava a vida que levavam. A terra
sumira das mãos calosas e sobrara o rio. Até quando o velho barrento rasgaria o
próprio ventre para alimentar os homens sem chão? Virgi! Não queria arreclamá,
mas... tava munto difícir. Na maioria das vezes, pensava nos anos
passados em melhor situação. Sonhava com a pequena roça verde de folhas e
raízes, cheirando a brotos novos. Lugar que fora dos pais dos pais de muitos
iguais a ele. Tomaram as terras, levaram a vida embora. Quem ficou, minguava às
margens do velho rio. Enquanto os pés descalços amassavam a relva molhada, Tião
sentia a cabeça girar pela escassez da comida e pelos tragos emborcados durante
a noite anterior. Fora levado pela roda de pinga. Pinga braba... arrevortava o istômigo! E agora, que se
avexasse di veiz! Ia pescá nem que
fossi a tar de... a tar de de... dona Iara! Aff! Tava se muqunfandu di novu!
A tar da dona, si existisse, tinha ido
s’imbora tamém! Virgi!Quanta bobagi na cabeça dum homi maldormido!
Tião correu os olhos
pela água ainda adormecida. Lavou o rosto e respirou o ar da manhã mergulhando
nos pensamentos que assustavam feito correnteza em dia de enxurrada. Abaixado,
desenrolou a rede cheia de buracos. Rede velha, tão velha que não sabia dizer
quanto. Haveria de pescar qualquer... ói!
que sombração zombava du disisperu
dele?Quem adeveria cantá música
tão... tão...tão cheia de belezura?
Os olhos do pescador tomaram-se de mágica alegria. À cabeceira do rio viu a
mulher mais linda que um homem poderia ver com as vistas do corpo. Viu e ouviu.
Das mãos dela brotava água limpa e perfumada, e os cabelos, ah!, os cabelos
eram tão sedosos e iluminados que o sol se encabularia ao vê-los assim. Era
uma... uma... mara... mara...maravia!
Ô dona di tanta formosura! Não adeveria sê das redondeza... e ainda
cantava inguar um anjo!
Deixou cair a rede. Por um
tempo, sem demora, esqueceu quem era e o que fora fazer ali. Via aquela mirage
sem perguntas no coração cansado. A voz cantante embriagava a alma e o corpo
magro. Sorria com a boca inteira, aberta, feito taramela quebrada. Os olhos
pregados na moça, na dona, na... maravia!
Ô dia bão, sô! Bão sem conta... e
chegava mais e mais perto do espetáculo que acontecia para ele, só para ele.
Tão perto, mas tão perto, até poderia jurar que sentia cheiro de laranja
madura. Gostava de flores. Gostava de música. Gostava de... vira! Vira, ara! Ira! Mas que... mara... via! Tonto pela visão
e pela música, Tião entrou no velho rio. Entrou, entrou e entrou. A água
barrenta lhe tomava o corpo como se lhe pertencesse. A correnteza não era
forte, mas na fundura do rio, muitos homens antes do pescador haviam perdido a
vida. Não era brincadeira! O rio levava quem o desafiava. Tião sequer lembrava
que sabia nadar desde menino. E nadava bem. Mas não ali, naquele momento, com
aquela voz entontecendo os sentidos e o corpo desnutrido. Foi e foi. Foi
descendo para o fundo mais fundo do fundo. À frente, a dona da voz e dos cabelos
iluminados o chamava para perto. Ele
foi. Quando os outros pescadores chegaram, encontraram a rede de Tião armada e
cheia de peixes. Menos Tião. Ninguém até hoje sabe explicar onde foi parar o
velho pescador no amanhecer de uma longa e afortunada pescaria.
Ivane Laurete Perotti