É PRECISO CARÁTER E
CORAGEM PARA SE IMPORTAR
- não se pode fabricar
novas lembranças, mas pode-se construir novas decisões -
"O desamparo não é uma ocorrência
natural; natural é o senso de pertencimento que a raça humana teima em negar
e se esforça vigorosamente para remover da memória genética." Ivane Perotti
Com o vento da noite sem grades, veio o brilho da febre.
Nas mãos nuas, os restos de mais um dia faziam troça das marcas acumuladas em
camadas de fétida sujidade. O que restava do homem não estava à mostra, se é
que mostrar fosse uma possibilidade no quadro do desamparo instituído. A nudez
da alma não aplica ao corpo revestido o frio da indiferença; esta, a indiferença, é uma decisão da razão despida de caráter e
coragem: um aborto emocional provocado a ferro no útero movediço da sociedade
moderna - passaporte para a construção dos conceitos de segregação.
Não se depreendia dos olhos febris a idade daquele corpo, mas era um
homem que a vida gastara por dentro e
por fora. Apenas mais um entre tantos na larga avenida atravancada. Era a Queda da Casa de Usher ( Edgar Allan Poe, 1839) que estava ali, bem à
frente, aos lados, acima e abaixo de quem decidisse ver e tivesse coragem para
assumir a frustração depressiva que exalava poderosamente os seus odores
nauseabundos: o cheiro do abandono é podre, mórbido, pegajoso e toma de assalto
as cavidades da consciência prática. Febre ou crise de abstinência? Fome ou
falta de ambição? Pobreza ou sorte de quem nada tem e não precisa de nada? A poesia
seria violentada a construir garras, apropriar-se de verdades, profanar os
sonhos, bajular os anjos, barganhar a arte para tornar leve e livre o sentido de uma
emoção sem sentido: a dor do outro! Cadê o outro? Estava ali, onde estavam
todos, no mesmo porto sem cais, sem margem de acesso, sem farol de anúncio às
tempestades recorrentes que varrem todos os dias, ininterruptamente, a
correnteza da vida. O outro estava ali, sujo, molhado pela incontinência da urina
escura e pelas lágrimas invisíveis de
alguma lembrança reticente. Estava e não estava. O "outro" se tornou paisagem e não oferece à vista
condicionada do homem oficialmente vivo e bem casado com os compromissos de
suas crenças, valores e pressões as fartas
e lautas ofertas de deslumbramento e introspecção. Sim, pois hoje, mais do que
nunca, vende-se e vende-se bem a natural ideia de buscar junto às paisagens a
natureza da reconexão, introspecção - o religare
do antigo latim, morto e enterrado em terras ágrafas - com o mundo: viagens ao
redor do mundo escondem os mundos que
nos rodeiam, fundamentam, e constituem. Fazer o quê? É o preço do amortecimento
diário, das anestesias, da apologia ao foco,
às metas e aos objetivos traçados, fixados e tombados em visões futuras: serei feliz amanhã, terei o melhor carro amanhã,
amanhã eu amo, transo, confesso e me presenteio, amanhã eu existo.... Pode
haver maior pobreza? Pode! Elas se reinventam cotidianamente com o aval sapiente do homem lambuzado em poder e corrupção. O termo "lambuzado", por
suas conexões com os fetiches de outras
fomes não cabe aqui, até por respeito aos olhos febris do homem à calçada.
Troco o termo - e não a ideia - por outros termos, mais robustos e verossímeis
à lembrança da noite sem grades. Lá vai a troca: no lugar de
"lambuzados", leia-se literalmente - se possível for - ... afogado, atarrachado, emporcalhado, embargado,
refestelado, aturdido e... confesso publicamente o desejo ardente de fazer um
trocadilho que o texto não permite, mas tem a ver com a palavra mais proferida
na atualidade. Uma pista morfofonêmica ( para amenizar o meu desejo e inferir
sobre a ação da leitura): tem três sílabas, começa com /f/ e termina com /o/, é
paroxítona não acentuada, muito usada por norte-americanos em filmes de pouca
metragem - qualidade duvidosa - pavorosamente repetida nas redes sociais, e,
vai lá: sintaticamente infere uma ordem impraticável, ou não?, em detrimento da pronominalização escolhida a
dedo - ou por outras razões da inconsciência linguística que nos abençoa, amém!
Geralmente aparece no modo verbal imperativo que, gramaticalmente faz dançar o
pronome reflexivo /se/, ingerindo as possibilidades democráticas inegavelmente
abertas na estrutura que as línguas naturais propõem.
Ideias de pertencimento? Em que latim se perdeu?
O homem
à calçada morreu. Deixou o corpo para trás e carregou a alma para algum lugar
desconhecido. Morreu sem avisar, não soube esperar pelo tempo certo de sair do modo paisagem e inserir-se na sociedade
que o segregou. Não soube!
Mas,
até as paisagens merecem um olhar presente; pois, se abandonadas, fenecem
diante de lembranças que jamais poderão ser colocadas nos lugares de
merecimento.
Se em algum lugar deste
planeta ou fora dele alguém ou alguma coisa conhece a cura ou a educação para a
indiferença e falta de caráter: S.O.S.! A covardia tem nos impedido de voltar à
essência da humana condição humana e
precisamos de apoio intensivo.
Câmbio
interrompido para o homem que deixou o corpo na calçada. Usher não era apenas um homem, era, talvez, uma leitura do outro
dentro do outro pelo poeta corajoso. Talvez!
" Dá ao homem aquilo que é do homem e entrega a ele como você gostaria de receber. Utopia? Não, poética da sabedoria." Ivane Perotti
Ivane Laurete Perotti