FLORES DE PANO
JARDINS
URBANOS
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e os pés descalços cobrem os canteiros de cimento cru -
"O que mata um jardim não é
o abandono. O que mata um jardim é esse olhar de quem passa por ele
indiferente. E assim é com a vida, você mata os sonhos que finge não ver."
Mário Quintana
Lápides vazias atravessam a avenida
abarrotada de transeuntes. Letárgicas, caiadas com o pó da miséria indolor à
vista dos olhos indiferentes. Flores de pano gasto hasteiam-se no desenho da
grama cinza. O asfalto engole os botões insistentes: espremidos embriões na
sementeira desguarnecida. Borboletas não voejavam ali. Quebradas asas deitavam vida
por entre as fissuras dos paralelepípedos empoeirados. Uma, duas, incontáveis
lápides humanas encarceram almas inconscientes. No bojo de cada qual, o espaço
de uma ilusão: a existência nega-lhes a consistência da imaterial ubiquidade.
Onipresente, apenas a intenção de agarrar-se à sombra do jardim urbano. Não se
lhes emprestam a definitiva morada. Morrer e morar são verbos de pertencimento
subjetivo: morrem, não moram. Jamais compreenderão a deixa do poeta ausente: "Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas." ( Quintana ).
O poeta mora, não morre. Mora na ânsia do
pensamento nutrido, do discurso digerido à mesa das poéticas: estética da gastronomia.
Guardanapos à boca faminta: discursos em travessas esquecidas imitam jardins sopesados
de lápides sem inscrição. Lápides não pensam, confabulam significados no
calcário dos parágrafos frios. Apenas o poeta entende porque nascem as palavras
eivadas de pétalas coloridas. Apenas o poeta deita a mão sobre o dorso nu de
sentidos e razões: por onde morre o homem
do sepulcro caiado?
Por sobre o pranto inaudível, a
multidão desatenta esmaga as flores de pano que brotam dos pés à beira do
asfalto. Pés de homens morridos,
vagalumes sem lume, mendigos do interminável anoitecer.Tolhidos, desvalidos,
indigentes do poder. Cavam-se os túmulos da sangria assistida.Fatídica democracia,
artesã da inaudita cidadania: "Quem
não compreende um olhar, tampouco compreenderá uma longa explicação"
(Quintana)
Insólita multidão atravessa a fila das lápides
desabitadas. O homem está fora de seu túmulo e procura por uma rosa com
alfinete de pressão. Uma flor de seda, gatilho para o jardim urbano. Cegos,
todos cegos, perdem-se antes de encontrar a linha de absolvição: " Cego é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria..."
(Mário Quintana)
Este não é um texto, é um espinho. O
mesmo espinho que atravessa a divisória entre a cidade e os jardins. Jardins de
homens, codinome: ai de mim!, jardins
plantados em trapos e nuvens de fome: gafanhotos da civilização.
Este não é um texto, é uma pedra. A mesma
pedra que calça as lápides ambulantes no centro das cidades fantasmas, enquanto
muitos escondem-se atrás de janelas tombadas.
Este não é um texto, é uma erosão. A mesma erosão
que devasta o umbral da sociedade falida em apoio aos muros de contenção.
Este não é um texto, é um plágio da vida real.
O mesmo plágio que arde diante dos olhos
em visita ao mundo natural.
E este não é um fim! O mesmo fim que
consolaria os indigentes, mendigos, miseráveis lápides que transitam pelos
jardins de nossas cidades: "... atiro
a rosa do sonho nas tuas mãos distraídas."
( Quintana)
Ivane Laurete Perotti