A FOME FEDE
CRIANÇA COM FOME
NÃO BRINCA – parte I
- cenas
impróprias para a vida -
Não
é a pornografia que é obscena. É a fome que é obscena.
José Saramago
Julho entrou rasgando.
Rasgou a pele ressecada. Arrepiavam-se os pequenos sulcos trincados. Ou o
vento, ou a poeira do frio de julho revelavam a ausência de lipídios. Sem
hidratação, a pele murchava. Coçava. Rasgava-se. Enfeava a face que mal
carregava dentes. Saindo dos quatro anos, a pequena não tinha ideia de quando
seria o seu aniversário. Aliás, aniversário não era para ser comemorado: por
que lembrar mais uma vez o estar ali? Presa no meio do mundo, solta como uma
pipa sem dono, batendo aqui e ali durante o tempo que a escola fechava para as
férias? Não ia à escola, claro! Mas conseguia uma vaga entre a comida das
outras crianças e, quando tinha sorte, as lágrimas sem sal se lhe garantiam um
pouco do que se passava atrás do muro.
_ Pequena! Já lhe falei
que a escola não abre em julho! Não tem merenda neste período – era a voz de
uma funcionária da escola que se retorcia de compaixão pela menina. Mas também
ela mal tinha para o ir e vir e manter-se no trabalho.
_ Eu sei, tia. Nem um
tantinho? – fazia um pequeno sinal com as pontas dos dedos sujos e machucados.
_ Com quem você está
hoje?
_ Ali... – apontava a
menina em direção à esquina onde outras três crianças, rapidamente maiores,
olhavam com esperança no estômago amarelado pelo derramamento precoce da bílis.
_ Quem são eles,
pequena?
_ ...
Era um dar de ombros
que fazia os olhos baixarem e o lado direito da boca subir um pouquinho, só um
pouquinho, pois os nomes que a aguardavam não tinham importância. A cada dia
resguardava-se em um grupo ou outro enquanto a sua mãe recolhia coisas no lixão
da cidade. Ela sabia pedir, especialmente naquela escola, cujo muro verde e
branco lhe fazia pensar em coisa boas. Gostava de encostar-se no muro alto e
descer os joelhos minguados. Ficava nessa posição por horas, sem quase sentir a
pele que cedia à pressão dos ossos finos. Gostava das vozes que ouvia.
Imaginava quando poderia estar ali, ou em outro lugar como aquele. Tinha
barulhos, pessoas, crianças e cheiros. As pessoas eram diferentes das crianças.
E muitas crianças já pareciam pessoas. Mas ela gostava mesmo era de adivinhar a
comida do dia pelo cheiro que atravessa o muro: feijoada, macarrão, arroz doce,
leite com biscoito – desses as crianças da escola reclamavam e ela nunca
entendia o motivo. Sabia esperar. Esperava, encolhida, a chegada furtiva da
funcionária que lhe olhava com aqueles olhos cobertos por grandes cílios.
_ Agora é julho?
_ Sim, pequena. É
julho! Não temos merenda na escola e...
_ Só um biscoito? Eu
divido!
A natureza que fizera
aqueles cílios dava voltas nas tripas remoendo o coração. Às vezes chorava de
raiva da mãe da menina, da sociedade, da política, do governo, até de deus ela
sentia raiva e blasfemava. Depois, contrita, pedia perdão ao último.
O frio brincava de
espalhar crueldades. Nem o sol da tarde dava conta de esconder-lhe a face
perversa. As crianças, ali paradas, como a esperar por um milagre, esperavam
por um biscoito, um pão, um resto qualquer de qualquer lanche. Até parecia ser
alguma coisa importante. Única. Até parecia que isso alimentaria aquele corpo
esfriado a socos profundos: socos de indiferença. Socos de férias no mês de
julho.
_ Pequena...
_ Pequena?
A mãozinha envelhecida
pela ausência de lipídios fez um sinal: algo como “tudo bem”! E, a dona dos
cílios grossos viu a monstruosidade que rasgava o mês de julho.
Continua
na próxima edição...
Ivane Laurete Perotti
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