NARRATIVAS


     NARRATIVAS DE UM OLHO SÓ – parte I
    - a educação é assunto de todas as gentes -

                                      Educar é impregnar de sentido o que fazemos. (Paulo Freire)

Parecia domingo, não fossem os uniformes em azul e branco que tomavam a avenida. Alguns adolescentes apostavam corrida sem dar importância ao sinal de “fechado para pedestres”. Mochilas chacoalhavam à força das costas encurvadas: peso não era o problema ali. Coalhado pelas risadas e conversas guardadas por todo o feriado, o centro da cidade lembrava um dia de campeonato de futebol. A estranheza dava as caras apenas onde os olhos batiam com outras figuras em grande número. Cuidadores da segurança aglomeravam-se quase na mesma proporção dos alunos. À porta da escola, um profissional da educação recebia os estudantes. Quem via, não ouvia, mas reconhecia a estranheza da movimentação.
_ O que se passa? – perguntou a senhora descendo a avenida.
_ Os nossos professores... – iniciou em resposta uma aluna secundarista.
_ Greve? De novo? Mas que...
_ Não! Não é greve! É grave o que está acontecendo. A senhora não soube?
_ Ah! Não. Quero dizer, a gente sempre sabe, né. Mas chega de greve!
_ A senhora tem filhos?
_ Tenho. Tenho duas filhas.
_ Elas estudam?
_ Graças a deus, não! Já estão formadas – disse a senhora desferindo um sinal religioso no ar.
_ Ah! Um dia elas estudaram, então!?
_ Claro! E estudaram ...você sabe, né?  Naquela faculdade grande, famosa e...
_ Pública!
_ Como?
_ Pública! As suas filhas estudaram em universidade pública!
_ É, estudaram. Mas elas mereceram estudar lá.
_ Eu não mereço?
_ Você está parecendo aqueles lá, minha filha!
_ Quem?
_ Aqueles... -  e fazendo um volteio com o corpo a senhora retomou o caminho olhando em oblíquo para a aluna que gostaria de ter escutado a determinação do pronome demonstrativo. Não que desconhecesse a dêixis, pelo contrário, queria ouvir mais uma vez sobre a separação entre os pronomes pessoais do caso reto: eles...nós..// nós...eles... esses daí//aqueles lá... longe ou perto, o grosso da população parecia não compreender que o tema da conversa era o mesmo: desenrolando-se em assuntos diversos, a sequência dos fatos entristecia pessoas como ela. Sua história de quase dezessete anos se dera dentro de escolas públicas e fazia bem pouco tempo que acordara para a não autonomia de suas escolhas. Desconhecia os argumentos históricos que desembocaram na atual situação, mas sentia dentro de si uma incontestável angústia: ao terminar o terceiro ano, o que seria dela e dos demais alunos? Acreditava ser possível cursar veterinária, gostava de bichos. Sua mãe esperava o mesmo e pagava rezas. Fora a única maneira de suportar as dificuldades diárias, repetidas dificuldades que quase a levaram a desistir. E agora? Não merecia entrar em uma universidade?
_ Bom dia!
_ Bom dia, professora. Alguma notícia?
_ Não! Ainda não!
_ Então, perdemos os professores, assim, sem conversa, sem discussão?
_ Estamos aguardando!
Outros alunos no final do ensino médio juntaram-se para receber informações. Talvez formassem um círculo de cinco, ao todo. Mas o ato em si destravou outra batalha:
_ Vocês entram ou vão embora. Vieram para a escola? Vão para a aula!
_ Mas... estamos conversando!
_ Conversem lá dentro. Aqui fora, nada de junção. Andando! Andando!
Os cinco elementos estudantis arrastaram a professora para dentro da escola. Ela queria argumentar, não deixaram. Queria chorar, não conseguia. Queria gritar, não recomendaram.
A penúltima segunda-feira de agosto apontava os sinais da erosão: as gentes não viam, ou faziam não ver aquele projeto que tomara forma e levava consigo a cabeceira do rio. Rio de tantos afluentes, rio de tantas gentes, gentes que acreditavam no poder da educação.
No portão da escola banhada de azul e branco, uma frase varria a história:” Aqui jaz uma das maiores e melhores escolas públicas do estado.” Mas nem mesmo a concordância histórica ou o acúmulo de narrativas pedagógicas de grande valor falaram alto o suficiente para a segunda-feira de agosto retomar o seu curso: “Lavar as mãos do conflito entre os poderosos e os impotentes significa ficar do lado dos poderosos, não ser neutro. O educador tem o dever de não ser neutro.” (Paulo Freire)

Ivane Laurete Perotti







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