TRISTEZAS DESEMBRULHADAS
CRIANÇA
COM FOME NÃO BRINCA – parte II
- faces da miserabilidade –
[...]a pobreza não é natural. É feita pelo homem[...]
Nelson Mandela
Julho ameaçava o fim das
férias. Aulas em retorno. Escola cheia.
Não muito longe do
portão da escola, três crianças espiavam o movimento. O frio não acenara adeus,
as roupas esfarrapadas mal cobriam os três corpos. Sujas, remelentas, pareciam
ter saído da tela de Portinari, Retirantes
(1944)1. A deslealdade da vida
sempre foi categórica: a fome é inglória e serve de moeda às manipulações do
capital. Ali estava uma prova. Outra prova em desvalia.
Quando o sinal fechou
os portões da escola, as crianças sentaram na calçada. Uma ao lado da outra.
Sem sorrir, sem falar, apenas sentaram. Mas a calçada é um território estranho.
Eis que uma senhora passante expressa o seu incômodo diante da cena:
_ Vocês não têm
vergonha? Vão para casa. Lugar de crianças não é na rua.
_ Não estamos fazendo
nada.
_ Vocês estão imundos!
Onde estão os pais de vocês?
_ ...
_ Vão embora. Aqui não
é lugar para vagabundagem.
_ A senhora dá um pão?
_ Pão? Eu não alimento
a sem-vergonhice...isso é uma vergonha. Vocês já aprenderam a pedir, é?
_ Minha irmãzinha, ela...
está... sem...
_ E os seus pais? Por
que fizeram vocês? Devem estar pedindo para eles comprarem drogas, né? Se eu
der um pão, vocês irão vender, né?
_ A gente ...
_ Isso não é coisa de
gente! É uma vergonha!
_ ...só...
_ Saiam daqui, este
bairro é de família. De gente trabalhadora!
A senhora passou e as
crianças ficaram. Uma nuvem conhecida pairou sobre as cabeças desgrenhadas. O
sol que se foi abrindo muito lentamente não pintou poesia sobre a calçada.
Outras pessoas trabalhadoras passaram por ali e também se foram com olhares
entre incomodados, indiferentes e penalizados. Mas ninguém parou. Não havia
tempo para pensar e mesmo se houvesse, alimentar uma criança, duas, três, não
resolveria o problema. O problema, em existindo, não fazia parte da vida
corrida de quem trabalha e luta pelos seus.
A hora tão aguardada se aproximava. O horário
do lanche movimentava os alunos para fora de sala: as vozes, os cheiros, as
brincadeiras atravessavam a rua. Então, o quadro de Portinari tomou voz: a
menina que parecia ser a mais velha, beirando os cinco anos, colocou um sorriso
no rosto ao anunciar uma certeza:
_ Vocês podem esperar,
a tia vem hoje. Tem aula. Se tem aula, tem merenda.
As outras duas
crianças, uma menina esquálida e um menino que lembrava outro quadro do grande
pintor brasileiro, sorriram no encolhimento da fome e da esperança.
O intervalo para o
lanche jogou-lhes de encontro à barriga uma verdade inaudita: a comida existia
ali. Ali, na escola de muros verdes, as crianças comiam. Comiam os sabores imaginados,
cujos odores insistiam em permanecer flutuantes.
O portão é aberto,
vagarosamente, e a funcionária diz aos pequenos:
_ Hoje não sobrou nada!
Sinto muito. Vocês podem voltar amanhã?
Continua...
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1PORTINATI, Cândido. Retirantes.
Óleo sobre Tela. Museu de Arte de São Paulo. Disponível em: https://www.filologia.org.br/rph/ANO22/66supl/RPh66-Supl_2.pdf.
Acesso em 23 de julho de 2019
https://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/crianca-com-fome-nao-brinca-parte-ii/