FOMES
CRIANÇA COM FOME
NÃO BRINCA – parte III
- a fome nunca foi embora: criou garras maiores
e mais poderosas –
Agosto ganhava fôlego.
O que parecia ser um fenômeno natural, descrevia o mês com cheiros de maus
agouros. Empilhados pelas calçadas, involuntários moradores de rua desenhavam
uma paisagem urbana deplorável, sinistra e dolorosa. Bolsões de pobreza extrema
abriam novas trilhas diante dos passantes. As sementes da indiferença plantavam-se
em solo fecundo: não mais do que um incômodo estético. Não mais do que o odor
das fezes compiladas em verbos de ação: a ordem estabelecia-se no extermínio das
metáforas de vida. Nenhuma figura de linguagem sobrevivia ao poder dos
investimentos na morte. O mapa da fome estendia o seu território nauseabundo.
Era agosto. Deploráveis
bocarras serpenteavam as línguas do poder insano. Mesmo que todos soubessem
mais do mesmo, e acumulassem justificativas nas faces da repressão, dividia-se
o povo: criança na rua é vagabunda. Talvez, levada por tal motivação, a “tia”
da escola de muros verdes estranhou a ausência da pequena pedinte. Não sentira
a falta da menina. Não era isso. Ela apenas estranhara a ausência daquele
incômodo que se chegava com dois olhos de criança velha: uma velha criança. A
“tia” não queria ser exigida pela consciência reclamante. Inconscientemente,
temia o que via e não dava conta de explicar o que sentia. Melhor oferecer “graças
a deus” por não mais precisar pensar “naquilo”: o seu coração sofria.
Agosto corria a escola.
Professores e crianças do Fundamental I alternavam-se no consolo individual. Em
casa, separadamente, as famílias suspiravam: poderia ser pior! Crianças,
famílias e escola pareciam aceitar passivamente o que vinha: presságios
agourentos do mês do desgosto.
Era agosto também para a senhora de boa
família que, incomodada com as crianças esfarrapadas à solta no bairro, ligara
para a prefeitura e registrara uma reclamação.
Entre todos, parecia satisfeita a tal senhora, pois compreendia ter sido
rapidamente atendida. Sem crianças vadias depreciando as calçadas. Boas
famílias moravam ali.
Quando algumas sobras
de merenda deitavam à sua frente, a funcionária da escola lembrava-se
rapidamente da menina suja e esfomeada. Sempre esfomeada, aquela criança.
Aceitava qualquer resto, qualquer pedaço de coisa qualquer e ainda agradecia. A
“tia” não se dera ao dever de pensar mais sobre o assunto. Ou era coisa de
deus, ou do governo. Ambos estavam distantes.
Mas agosto cobrava a
história. No final de uma semana muito agitada na escola, um professor que morava
em outro bairro indagou:
_ Não viram mais a
menininha da calçada?
Alguns responderam
negativamente e outros sequer sabiam do que se tratava.
Movido pela
curiosidade, o professor perguntou pelo caminho: ninguém sabia dizer. Acabou
por esquecê-la, já que o mês arremetia-se contra as expectativas de quem quer
que fosse.
Na metade do primeiro
mês do segundo semestre, a campainha da escola soou um toque curto.
_ Tia... tem biscoito?
Um menino esquálido e
uma menininha esfarrapada espiavam por entre as sujeiras e as feridas do rosto.
_ Vocês voltaram? Onde
está a outra menina?
_ ...
_ Ela se escondeu? Onde
está?
_...
_ Ah! Já sei...deve
estar com vergonha. Hoje não sobrou nada.
_...
_ Cadê a outra menina?
Os olhos das duas
crianças mergulharam em breve vazio. Breve era a dor e breve era a vontade de
explicar. Nada disseram. Permaneceram no silêncio desprovido de sonhos. Sonhos
são amuletos de sorte e aquelas crianças desconheciam ambos. O abandono e a
indiferença matam, mas para elas, a morte surgia com a mesma naturalidade da
fome na barriga murcha.
A funcionária da escola
desejou não ter perguntado. Também não desejou sentir o súbito lampejo que lhe
chegou em forma de certeza: o mês de agosto era cruel.
Ivane Laurete Perotti
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