PALAVRAS DESENCONTRADAS
SOBRE AS PALAVRAS
DESENCONTRADAS
Santas
palavras sentidas
Era difícil viajar assim: carregada pelo tempo, marcada pelo
uso, riscada e rabiscada, de boca em boca, de lugar em lugar, de idioma em
idioma.
Camuflada,
rodou entre paisagens secas e áridas, até encontrar um “alguém”. Era um
“alguém” franzino, estatura baixa, olhos sem brilho.
Nem
de longe esse "alguém" era ideal, mas independente das condições, ela
precisava existir. Estava cansada de guardar-se dentro do dicionário! Sofria trancafiada entre páginas e páginas,
arqueada sob o tempo da espera. Esperar "nesse" lugar era um
derradeiro pesadelo. O início do fim.
Os olhos sem brilho procuravam um algum lugar no entardecer.
Ela tentou acompanhar a direção daqueles pequenos e apertados
orifícios preenchidos por esferas que serviam para ver, mas a força de milhares
de sentidos aflorando em suas costas semânticas apressou-a para mais perto
dele.
Ele,
se é que fosse alguém, estava perdido entre onde permanecia seu corpo e para
onde o levavam seus sentimentos. O que estaria olhando através do entardecer? O
que buscava atrás de si mesmo? Conhecia muitas companheiras, parceiras de campo
semântico, amigas que usavam o mesmo guarda-chuva para expressar essa distância
observável, mas nenhuma delas se fazia presente naquele momento. O desespero
tomara conta de todas elas depois dos últimos acontecimentos; cada qual
procurava por si mesma encontrar uma forma de sobreviver.
Precisava aconchegar-se ao momento vivido pelos olhos sem brilho
para alçar-se boca afora; para agenciar-se usável, funcional, necessária, importante.
Mesmo que fosse apenas pelo lado de dentro dele, onde quer que esse lado ficasse.
Desejava
ter mãos para puxar os cabelos daquele homem sem expressão, talvez ele respondesse
ao chamado do colorido que pintava o céu e as árvores. Ela mesma engasgava-se
diante de tão motivada possibilidade de existir e tornar-se empregável,
traduzível, apenas pelo deleite de estar ali, no "agora".
O homem estava vazio. Vazio de todas as formas que ela conhecia.
Nenhum sinal, nenhuma indicação de qualquer processo de reconhecimento entre os
olhos sem brilho e as cores que se derramavam vagarosamente.
Palavras
são teimosas por natureza de criação. Enroscou-se na ponta do olhar que se
mantinha sem fim e foi se achegando, achegando, procurando no silêncio recheado
de sentidos nascituros agarrar-se a um
deles. Difícil colar-se à trilha daquele
olhar, a cada tentativa escorregava para o chão da alma inerte.
Foram muitas as quedas.
Foram muitos os arranhões em sua morfologia quase plástica. Resfolegante,
foneticamente desgastada, deixou-se ficar sobre a terra umedecida pela grama
que respirava alto. Sussurrou para si mesma que tal empreitada a levaria à
morte. A ausência de uso já lhe tomara a cor. Sucumbia na esperança de ser
usada em tempo e a tempo. Seria seu destino apagar-se assim, como se nunca
antes tivesse servido a tantos?
Quando já fechava suas conclusões
desanimadoras, os olhos sem brilhos mudaram de lugar. Baixaram-se até encontrar
a ponta da incompletude onde permaneceram inertes e intocados.
Sem forças, ela tentou
mais uma vez subir pela trilha que se abria sem muitos sinais. Ficou na ponta
dos pés que não possuía e colocou toda a energia que sobrara do último uso no
impulso de grudar-se novamente.
Grudou-se.
Possivelmente a posição ajudava, mas nada para além disso. Grudada à ponta do
olhar descolorido esperou em suspense. Era tudo ou nada!
Esperou e esperou.
Aquele ser humano indicava ter desistido de existir. Não compreendia tamanho
vácuo em alguém com tão pouco espaço ocupado. Era um vácuo que crescia
descomunalmente em proporção ao contexto limitado.
O sol ainda se fazia
presente, banhando com os últimos raios que recolhia preguiçoso um cantinho da
praça vazia.
Ai! Certo torpor
ameaçava derrubá-la mais uma vez. Aquele olhar não se abria. Precisava subir a
qualquer preço para conseguir instalar-se. Instalar-se! Era irônica e trágica a
sua existência. Precisava instalar-se para não deixar de existir: era esse o
paradoxo de sua existência verbal. Ir e vir, de boca em boca, sem saber onde
poderia descansar sem o risco de adormecer
para sempre.
Ai! Quem dera
constituir-se de material menos instável, flexível, mutável. Queria poder tocar
aqueles olhos, beliscá-los, irritá-los, acordá-los.
Do bico dos sapatos
sujos ela não saíra.
Já passara por vários mergulhos da alma e da
mente humana, mas esse era abissal. Nenhuma nesga, nenhum sinal de que seria
possível dar sentido àquele momento.
Pensou fechar os
olhos que também não tinha e suspirou, por que suspirar lhe era possível: uma
espécie de compensação por tantos e tantos anos de articulação e uso social. Quando
aquela coisa molhada raspou sua trilha, deixou-se levar. Foi carregada por uma
lágrima que manchava o bico empoeirado do sapato gasto. Lágrima gorda, redonda:
era um bom sinal. Um bom augúrio para a sua condição semântica. Não afundaria,
não morreria afogada, pelo contrário, fundiria seu âmago conceitual naquele
líquido salgado.
Agora sim. Abria-se um caminho para a
instalação de qualquer sentido que os olhos molhados "agenciassem".
Uma
onda de esperança tomou-a por inteiro e mais que depressa se desfez na lágrima
que se multiplicava.
Estava salva. Chamaria suas irmãs para um
tempo de incubação. Ficariam estocadas em algum lugar até instalarem-se; brotariam
naquele terreno fértil.
O pequeno homem chorava e seus olhos
renovados criaram várias linhas de construção. Coerentemente, sintagmas
apresentavam-se em prontidão. Que fossem usados pelo operário da língua. Que se
fizessem gastar e renovar naquele plasma que é a alma humana. Da alma para a
boca, encontravam-se os olhos no meio do caminho. Quando fechados, o desvio
acontecia mais abaixo, pelos caminhos do coração. Quando excessivamente
abertos, abriam trilhas até a razão. Lugares comuns tantas vezes visitados no
momento de fonética explosão.
Ai!
Sobreviveria! Por mais um tempo, articular-se-ia feliz pelo campo dos sentidos.
Outra vez o verbo se
fez! Outra vez um homem sentiu, sentiu e sentiu e instalou a paz nas revoltas
margens de suas dúvidas!
Salvem as palavras!
Salvemo-nos da guerra fria que começa onde o
amor não encontra palavras para garimpar o coração humano.
Que santas palavras
santas aportem em nós, apagando o pecado da inércia emocional.
Faça-se a luz pelas benditas palavras "bem ditas".
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