UMA QUESTÃO DE COMPORTAMENTO UMA QUESTÃO DE COMPORTAMENTO





          UMA QUESTÃO DE COMPORTAMENTO 
                                                                                    ou
                                                               AZEDUME DA ALMA
                                                                                  
                                         "... a gentileza nos humanos tem o mesmo efeito do calor na
                                          cera."
                                             Arthur Schopenhauer

            Em uma dessas tardes de sol forte que têm feito de nossos dias uma antecipação dos cenários de Dante (destaque-se aqui meu latente e comprovado otimismo ideológico), necessitei buscar na cidade, por entre os lugares comercialmente abertos a clientes famintos de algo, um objeto comum e casual. Estava despreparada para os contextos que me aguardavam.
            Sou inexoravelmente despida de pretensões consumistas, e para ser mais clara, nego os prováveis pressupostos femininos que dão guarida ao desejo ínfimo de visitar vitrines, lojas e centros comerciais. Sou avessa a compras. Mas urgia que eu adquirisse um determinado material de extrema necessidade. Na lógica de meu desgosto acalento um axioma: quanto mais clara e amável eu for, menos insalubre poderá ser o intercurso de minha experiência discursiva e social. É uma máxima que rege a coerência que tanto prezo. Pois sim, estou cá a elucubrar que algo "azeda" o mundo das ofertas rápidas.
            Entrei em um espaço específico, cheio de balcões muito bem dispostos e pessoas uniformizadas. Sorrindo, comecei a interlocução da seguinte forma: "Boa tarde! Por gentileza, senhor, eu gostaria de ...".
            Ai! Preciso com urgência de uma sessão de terapia, de descarrego, de ...  estou aberta a sugestões!
            Contundentemente recebi o seguinte retorno: "Vai direto ao ponto, dona. O que é?"
            Em segundos repassei meu comportamento, minha fala, a roupa que usava. Teria sido o sorriso? Na dúvida, respondi com uma frase direta e um quase meio sorriso: "Uma (....), por favor!"
            Não estava ao dispor tal objeto. Agradeci temerosa e em dúvida sobre o que no mundo da linguagem visual poderia chamar-se "minha performance".
            Andei pelo belíssimo cenário de nossa cidade procurando pelo produto em falta e amargando ser minha a responsabilidade pelo retorno que recebia: desatenção, mau humor, má vontade, desinteresse. Ai!  Sou junguiana de formação, então, assumo a responsabilidade pelos acontecimentos em minha vida. Que Carl Jung não se revolva nas camadas etéreas, mas, algo vai mal no paraíso das injunções cósmicas.
            Já nas calçadas, suando o resto da água que meu corpo retinha a custo, fui abordada por uma senhora que PEDIA. Isso mesmo: PEDIA ALGUNS TROCADOS!
            Parei e saboreei a gentil e consciente amabilidade usada na tentativa de me convencer a "doar" algo tão em falta no bolso de todos. Eu não possuía "pratinhas", mas convidei a senhora de mais de setenta anos para tomar um suco com pão de queijo. Amo pão de queijo! Precisava entender o que excedia ali e faltava lá. Claro! Óbvio! Claríssimo: ela "pedia" e sua condição a colocava na obrigação de me convencer, persuadir... Uai!, mas que barbaridade, tchê!? E porque é que o comércio investe tanto em campanhas publicitárias, escalas de ofertas, liquidação, etc., etc., etc.? A lógica não é a mesma? Certamente não é! Ou pelo menos, os balcões de venda estão muito longe dos apetitosos e ilustrativos cartazes de convencimento: é o papel da "obrigação"?
            Queria levar comigo a bela senhora morena que caminha por nosso centro para dentro de alguns locais de venda direta. Equilíbrio faz parte dos teatros da vida. E vender, ou pedir, podem fazer parte da mesma cena, mas não comungam do mesmo ato.
            Nos palcos de nossos dramas, temos escolhas a fazer e a gentileza, pode ser uma grande arma se direcionada parta as próprias fuças.
                                                                 
                              "Aprendi silêncio com os falantes, tolerância com os intolerantes, e
                               gentileza com os rudes; ainda, estranho, sou ingrato a esses
                               professores."
                               Gibran
            

Comentários

Postagens mais visitadas