CONTO

ROLHA DE POÇO...
                                                   

                             Desde o dia em que nascera menina robusta, para os nove meses de gestação e mãe nem tão robusta assim, Lori, pelo batismo do padre, e “Rolha de Poço”, pelo batismo do povo, aceitara chegar ao mundo de um modo a não gerar discordâncias. Ou pelo menos, amainá-las com o seu jeito de ajeitar as coisas de modo a agradar a todos. Baixa, sorridente e bastante avantajada, ria às gargalhadas quando era chamada pelo nome imposto. E esse era o comum de sua vida no povoado que mais lembrava um acampamento improvisado. Apenas a mãe insistia em frisar seu nome, pois de certa forma lembrava o desavergonhado do homem que a abandonara logo depois de saber que crescia barriga na mulher.
                             Se apelidos marcam alguns de modo a estraçalhar a estima confusa, Rolha de Poço sofria ação contrária. Assimilara o nome dado como uma forma de reconhecimento carinhoso por tudo o que nela era tão bem arredondado. E ela era. Redonda e doce Rolha de Poço. Olhos e nariz como se desenhados pela mesma minúscula circunferência, cabeça simétrica em relação ao tronco, boca carnuda, pequena, lembrava um morango em crescimento ao invés de um pêssego maduro. Dedos, dedos, dedos, Lori possuía dedos dignos de admiração. Onde eles começavam era uma pergunta que exigia toda a forma de observação. E ela gostava de mostrar sua mão cheia de dedos, ou seus dedos na mão quase, quase, quase uma extensão do mesmo risco arredondado. Disforme? De jeito algum. As mãos de Rolha de Poço eram graciosamente redondas, como que impedidas de perderam a graciosidade de seus traços pelo resto da vida redonda que levasse. Suas orelhas despareciam atrás do cabelo negro e encaracolado. Era um belo cabelo de anéis fechados em si mesmos, sem esforço, sem perda de tempo diante do espelho e do pente molhado. O cabelo de Lori não se desgrenhava, impecável, arrumado, sem que ela própria qualquer coisa fizesse para mantê-lo assim; gostava de brincar como as outras meninas de sua idade na fase em que as madeixas não são empecilho para a alegria e o prazer feminino.
                             Por que Rolha “de poço” e não de garrafa, garrafão... ou qualquer outra alusão pertinente ao objeto determinante que iniciava o nome popular de Lori?
                            Nada tão óbvio quanto a falta de criatividade popular diante de alusões simples acrescidas de qualquer fato que localize no espaço e no tempo a nominação dada.
                            Lori nascera em plena luz do dia, em um dos movimentos mais fortes feito pela mãe na suspensão do balde que subia do poço no quintal da casa. Pronto! A leitura de mundo preexiste à consumação dos fatos.
                           Rolha de Poço era a soma da leitura externa exercida sobre a menina com a identificação do lugar que escolhera para vir ao mundo. Essa não passa de uma simplificação grotesca, uma leve tentativa de associar o nome à sua representação – se é que tal fosse possível - então, fadada ao insucesso. Mas oferece uma ideia do porque Lori não ser chamada de Rolha de garrafão, garrafa, garrafinha, entre outras possibilidades.
                         “Bulling”? Nada! Lori nascera imunizada aos olhares externo e às críticas que cutucam, apavoram e humilham comumente a nós, pobres mortais, quando não destroem e arrasam o ego humano. Rir era a sua forma de responder a qualquer desagravo. Tanto que, crescendo assim, impusera-se sobre os outros, crianças e adultos, desenvolvendo uma liderança silenciosa, harmônica, indelével. Mas forte o suficiente para ser reconhecida até por quem estivesse fora desse círculo de relações. Assim Lori crescia em diâmetro, pouca altura e muito carisma.
                          Ao completar vinte e nove anos, conheceu ou deu-se a conhecer a um forasteiro vindo ninguém sabia de onde. Por razões que os grupos reconhecem dentro de seus limites, não caiu no agrado do povo aquela simpatia entre os dois. Liam os que estavam de fora que Rolha de Poço não estava sendo muito cuidadosa ao alastrar seus sentimentos para os lados do desconhecido.
                        Homem alto e bem talhado, falava como se tivesse engolido um dicionário de palavras difíceis e só deixava sair pela garganta as mais impensáveis, aquelas que ficavam no final da lista dos termos desconhecidos. Cheirava a excesso de perfume e outras coisas não identificadas. Mastigava um charuto que parecia estar sempre com o mesmo tamanho, e diziam alguns mais observadores que ele, o desconhecido, só o punha na boca quando queria impressionar para além do que sua figura já o fazia. Charuto mascado e guardado com molho de baba velha era a prova de uma índole tacanha. No mínimo desleixada, ou quem sabe... quem sabe... não dava para fazer uma ideia só do homem desconhecido. De onde viera e o que queria no povoado de uma rua só? Por que procurava tanto saber por onde andava a Rolha de Poço? O que estava a fazer? O que faria e em que hora? Até perguntara por ela e queria saber de detalhes que a um cavalheiro não deveriam interessar.
                           Quando inquirido sobre suas origens, desdobrava-se em perguntar antes de responder ao ponto da resposta perder a vez.
                         Já fazia uma semana que ele dormitava na única pensão da vila. Frequentara as duas missas do Padre Antão, fizera-se aparecer entre as vozes do coro, mas não puxara uma moeda sequer para partilhar do ofertório. Avaro? Mesquinho?  Pobre? Tacanho?
                          Dona Odete interrompera sem querer um quase convite feito pelo forasteiro que tentava levar Rolha de Poço para um passeio fora da cidade.
                          Atrevimento do homem e ingenuidade de Rolha? Onde estava com a cabeça redonda aquela menina? Repetiria a mãe? Comentários saltavam das vozes do povo preocupado com a menina.
                           A mãe de Lori que construíra um mundo dentro de si mesma para sustentar a solidão de mulher abandonada, fazia olhar e nada ver. Conselho que é bom não se dá, faz-se uso dele para si próprio e ela, mãe cansada, nesse momento não via motivos para abrir a boca. Rolha de Poço sempre soubera dar conta de si mesma sozinha, aliás, muito melhor do que o imaginado, o esperado e o provável. Tornara-se uma rendeira de sucesso, com aqueles dedos roliços, curtos, grudados às mãos gordas e ainda mais redondas à medida que se passavam os anos e os quilos espalhavam-se no pouco espaço do corpo atarracado. Gastava pouco e economizava muito. Muito mais do que se pudesse supor. Ganhara clientes fieis, mulheres da cidade grande, pequenas lojas que colocavam o seu produto mundo a fora. Rolha de Poço trabalhava incansavelmente.
                      O sucesso financeiro de Rolha não saltava à vista dos desinteressados na vida alheia, mas aos que vivem para bisbilhotar, o montante que a rendeira deveria levantar era facilmente deduzido.
                      Pouco vista nas ruas, cumpria com os horários da missa e de qualquer festa que se anunciasse. Rolha gostava de dançar, de experimentar todos os tipos de comida, gostava de conversar e ver a alegria dos outros.
                      Não faltou à festa de encerramento da Quaresma. Depois de muito jejum forçado pela necessidade de colocar a regra religiosa antes dos desejos do corpo, fez-se pronta em segundos. Ser uma das primeiras a chegar às barracas de quitutes e manjares era uma tradição mantida sem esforço.
                      Dentro de um vestido amarelo com pequenas flores espalhadas pelo tecido, Rolha estava redondamente linda! Linda e rápida! Seus pés acostumados a acomodarem-se quase sempre dentro do mesmo calçado, não faziam barulho por onde cortavam caminho. Acomodados um com o outro, levavam Rolha cheia de desejos pelos papos de anjos de dona Quitéria, pelo arroz doce de dona Joca, pelo dedo de moça de dona Vita.
                      Lambuzada em um dedo de moça para lá de fresquinho, Rolha de Poço demorou a engolir a porção avantajada que colocara na boca. Sorrindo entre farelos, cumprimentou o forasteiro que já tomara entre as suas a mão lambuzada de calda e recheio branco.

                         _ Senhorita Lori?!

                         O sim que ela disse em resposta ao meio cumprimento e ao susto total esparramou mais farelos sequinhos para os lados e muitos foram grudar-se na lapela do casaco do forasteiro. Que claramente, ignorou o inconveniente de sua apresentação intempestiva tanto quanto o estado de desalinho em que se encontrava a moça.
                         _ Me... me desculpe... esses farelos, e a calda...

                         Para espanto e absoluta ofensa aos presentes, o forasteiro mais que depressa limpou com o dedo indicador um pedaço do doce que teimava em ficar no canto da boca de Lori.
                         Murmurações, xingamentos, comentários sobre o abuso e os maus modos do desconhecido tomaram a festa.
                           _ Lascivo...
                           _ Homem abusado.
                           _ Tem parte com o "coiso ruim"...
                           _ Precisa de um corretivo.
                           _ Onde já se viu um despautério desses?
                           _ É o que dá essa moça não ter pai...
                            _ Nem mãe! Que mãe igual àquela, ninguém merece.
                            _ Ora... ela criou a filha sozinha!
                            _ Está aí o resultado. Onde já se viu um... um... homem desconhecido tocar a face de uma moça assim, em público. E...
                            _ O que vamos fazer?
                            _ Abrir os olhos, abrir os olhos e ficar por perto. Ninguém tira os olhos desse gaiato.
                            _ Mas e Rolha?
                            _ Ela deve saber o que faz... nunca deu trabalho antes!
                            _ Por isso mesmo! O que ela sabe da vida?
                            _ Dos homens, você quer dizer!
                            _ Que seja! Será que a experiência da mãe serve para alguma coisa?
                            __...
                             
                            Ainda ruborizada pela atitude do forasteiro, Lori estava entre sentir o prazer daquele dedo roçando o canto de sua boca e rebater o constrangimento de saber que deixara isso acontecer!
                            As quituteiras pararam no ato, assim como todos os festeiros na praça.
                            Lori queria emendar os sentimentos conflitantes e terminou dizendo:
                            _ Já... o senhor já... comeu o dedo de moça da dona Vita?
                            _ O único dedo de moça que vi até agora é o seu, senhorita Lori.
                               Se apenas as palavras tivessem alcançado a atenção dos que estavam atentos, talvez o burburinho fosse menor. Mas a cada um deles chegou o olhar longo e atrevido que se desdobrou sobre Rolha de Poço.
                             Houve quem se movesse para defender a honra da moça, mas foi impedido a tempo pelo dedo de dona Vita que já se interpunha na cena.
                              E não era o doce que ela oferecia em riste. Era o seu próprio dedo, fervendo com a vermelhidão que assaltara seu rosto de senhora bem nascida e bem criada.
                              _ Olha aqui seu moço... aqui não é lugar de descompasso com as moças. A nossa cidade é pequena, mas é honesta. O senhor trate de...
                              Enquanto ela falava, o círculo ao redor da cena entrava em êxtase. Aquele forasteiro sairia da cidade com marcas de cavalheirismo e boa educação, nem que para isso fosse necessário deixá-lo com as marcas da violência bem cobrada.
                             Já se ouvia o crescente fervor das vozes ao redor, quando o forasteiro, com a calma que Deus lhe dera em dose máxima e multiplicada algumas vezes mais, se manifesta:
                             _ Dona Vita... a senhora é a famosa Dona Vita. Eis aqui, aos seus pés, um servo para servi-la.
                             Outra vez a cena corroeu-se em si mesma pelo tom que o homem dera a cada movimento, ao timbre da voz, ao lugar dos olhos, ã curvatura das costas acompanhando o joelho no chão.
                              Não era possível!
                              Era possível sim, foi a vista de todos que Dona Vita aceitou o beijo no dorso da mão, mão de doceira, marcada pelos pontos dos doces, pelo fogo das panelas cheirando a canela, baunilha e pelos cabos das colheres que carregavam a marca das delícias que fazia.
                               _ Ao seu dispor, Dona Vita. Seu humilde servo que atende pelo nome de Tadeu.
                               _ É... é... muitos prazeres seu... seu Tadeu!
                               Já em pé, Tadeu fazia-se mais doce do que todos os doces que a doceira produzira. E a doçura parecia tanta em poder e volume que se alastrava feito névoa em dia para chover.
                               Com uma das mãos ainda lambuzada pelo resto do dedo de moça de dona Vita, Lori olhava para o que acontecia com olhos de rendeira antiga. Cada nó encontra seu ponto e as linhas fazem o caminho que a gente quer. Será que teria chegado a hora de suas linhas encontrarem um carretel para se enroscarem? Ai! Ai! Ai! Sonhara tanto com o momento em que faria rendas para outros sonhos, para ocasiões em que seus dedos se perderiam nos desenhos das linhas tramadas com dedicação, esperança e, aquela certeza que agora parecia mais viva, real, tocante!
                               Rolha de Poço estava feliz.
                               A pequena cidade comemorava a presença de moço tão educado, tão inteligente, tão preparado pela vida para dar atenção a quem quer que fosse.
                              Os doces, Tadeu provou e aprovou um a um, sem economizar nos adjetivos e conjunções às fazedoras de tão imperiosas pérolas, já que a nenhum deles precisou pagar, pois era uma honra servir a um homem tão... tão...
                               A cidade deveria mudar de nome.
                               Sim! Deveria o mundo saber da riqueza que inundava as mãos daquele povo trabalhador, daquelas mulheres abençoadas pela maior e mais poderosa de todas as bênçãos celestiais. Consultar o padre Antão? Não se fazia necessário! Ele como bom sacerdote certamente concordaria com o dito. Capinar? Era fácil. Construir? Era simples! Mas elaborar receitas tão imperiosamente colossais era... era... um milagre que descia pelas mãos dos arcanjos e serafins.
                             A noite já ia longe quando a praça perdeu o movimento. Ninguém viu quem foi saindo, mas foram todos com a alma leve e agraciada, deitarem o ego afagado e bem alisado pelas palavras de um homem que sabia das coisas.
                            Foi assim que Tadeu passou a rodar mais pela cidade, comendo um dia aqui, outro ali e passando muitas noites cuidando da solidão da redonda rendeira.
                             Fato acontecido acostuma-se a que continue a acontecer.
                             A mãe de Lori deveria levantar as mãos para o céu por sua filha ter um homem tão bem preparado interessado nela e nas rendas que produzia. Ela que mostrasse para a filha, que homens assim Deus fazia poucos e deveriam ser bem tratados os pouco que apareciam.
                            Tadeu agora orientava Rolha de Poço a aumentar a sua produção e a guardar muito mais dinheiro do que ela já fazia. Trabalhava tanto a moça que sua única fonte de vitalidade advinha do enrosca-enrosca sobre as rendas que tecera para si mesma em tempos idos, aqueles tempos que demandaram solitários carreteis. As noites agora precisavam ser divididas entre o trabalho e o prazer. Nunca demais para um só, pois o desequilíbrio apareceria nos mínimos detalhes daqueles traçados tão elogiados nas cidades vizinhas. Lori era uma grande rendeira.
                          Pouco mais de três meses se passou desde a festa de reconhecimento do forasteiro Tadeu, homem ajuizado, desapegado de todo, ordeiro e muito respeitador. Pouco mais de três meses se passaram até o grito de desespero atravessar a cidade de ponta a ponta.
                          Até o sino badalou naquele ritmo de atenção e perigo que se usa em casos extremos: incêndio? Morte acidentada?
                         Das casas saíam todos, tal qual estavam em seus afazeres ou não fazeres, acudindo o terror que sentiram vibrar junto com o dia que mal iniciara seu labor.
                        A praça ficava mais perto, pois as casas ajeitavam-se ao redor dela, e foi para lá que acudiram em busca de notícias, de saber como ajudar ou a quem acudir.
                       Outro grito ainda mais terrível fez com que todos identificassem a voz de Rolha de Poço. Não era exatamente um grito, era um urro que negava a condição humana de sua produção.
                       Rolha de Poço, deitada no chão sobre o corpo da mãe, batia a própria cabeça contra a pedra da qual se fazia o piso da casa.
                       Dava para ver o sangue molhando as duas mulheres, como se o ferimento e a dor também fosse uma só.
                       Rolha de Poço levantara antes, muito antes naquele dia. O trabalho acumulava-se sobre o tear. Estranhara não encontrar Tadeu ao seu lado, estirado como sempre gostava de dormir nas noites em que ficava para tomar conta da casa.
                       A porta do quarto da mãe chamara sua atenção e o volume estranho que se sobressaía sobre a cama também.
                        Lori correu para a mãe que parecia sem respirar. Colocou-a no chão tentando reanimá-la, chamando, gritando para que acordasse. Mas não foi o silêncio da mãe que lhe deu a certeza da morte.
                         Sobre o estrado da cama de viúva, o grosso tecido do colchão, rasgado em várias partes e esvaziado por completo lhe deu a compreensão dos fatos.
                        Tadeu se fora.
                        Encontrara a volumosa fortuna acumulada no colchão da cama, no quarto da mãe e não resistira a todo o poder que aquele dinheiro lhe daria.
                        Tadeu se fora. Sufocara a mãe dela com o travesseiro de penas de pato; as marcas da luta eram visíveis, apesar das poucas coisas fora de lugar.
                        Lori enterrou sua mãe em um cortejo que reuniu a comunidade em estado de choque. Era o primeiro crime na história da cidadezinha.
                       Rolha de Poço não chorava mais. Secara suas lágrimas, secara a alegria de moça rendeira, fatigada pela única e avassaladora dor de sua vida que se desdobrou em perdas irreparáveis. Tadeu roubara-lhe a alma faceira.
                       O dinheiro faria de novo. Não lhe restava outro ofício. Mas a mãe ela não traria de volta. A pobre mãe que só passara na vida para deixá-la.
                       Sofrimento por sofrimento, a coisa em si não era o problema, aprendera com a mãe a não esperar muito. A vida de Lori era boa porque ela a aceitava tal como estava. Seria assim outra vez.
                      Sim, ela precisava recuperar-se sem tempo. Havia muito para esquecer e planejar. Novos pontos, novas tramas, novas linhas para amarrar e cortar.
                      Tadeu roubara parte de sua vida, mas deixara outra no lugar.
                      Grávida, Rolha de Poço riu para dentro, com aquele sentimento azedo de humor velho e encarquilhado:
                           _ Eu sabia! Eu sabia... mas precisava acreditar.

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