CONTO:
DEPOIS DA MORTE....
_ Só resolvo isso
depois da morte!
_ Você tem miolo mole,
resolve logo e cai fora!
_...
_ O seu silêncio é
minha certeza.
_ Não estou em
silêncio!
_ Então diga alguma
coisa...
_ Já disse: depois da
morte fica tudo resolvido.
_ Viu? Estou certa!
Você perdeu o senso de orientação. Como é que vai resolver depois da morte,
Judite?
_ Eu é que sei.
_ Vou desistir de entender
você, mulher. Vou desistir!
_ Vai nada, você é minha
melhor amiga, vai ficar comigo até o fim.
_ O fim já chegou, Ju. Já
chegou. Você não quer enxergar o óbvio.
_ Só é óbvio para você, para
mim, falta um pouco mais para a corda apertar.
_ Que corda? Que corda?
_ A que ele mesmo colocou,
você sabe...
_ Ai! Minha santa! Não sei
mais o que lhe dizer.
Judite sequer ouvira as
últimas palavras da amiga. Sua atenção estava voltada para o quadro que criava
e alimentava a cada dia um pouco mais. Depois da morte, Sérgio saberia a
verdade e então, seria tarde para pagar o preço devido e em muitas vezes
aumentado. Quando alguém feito ele não desentorta o jeito torto com as lições
da vida, tem de passar pelo inferno ainda em vida para ter uma chance, mais
uma, de entender o que precisa.
Ninguém melhor do que
Judite para saber do que Sérgio precisava. Acostumado a ser o centro das
atenções naqueles rodeios que ela odiava até o fundo mais fundo da alma, seu
noivo assumia as quatro patas que o rodeavam na vida que levava fora da arena.
Era um quadrúpede manco! Manco e desgraçado pelo tanto de mulheres que namorava
além dela. "Namorava" não era bem a explicação para o feito. Na boca
dele, e delas, e dos outros todos que sabiam da desgraça que Judite carregava
sem trégua, Sérgio "namorava" apenas com a Judite... apenas com a
Judite! E que se entendesse bem a maldade da explicação que não parava aí. Ela
via nos olhos de todos o que não precisava ser dito. E a prova estava ali,
brilhando no dedo de noiva maldita, traída, carcomida pela raiva e pelo ciúme.
As outras, as outras ele "comia", "trepava", pagava para
ter o que ela dava de graça! De graça não! Ela própria pagava o preço de deitar
com aquele quadrúpede manco. Era o coração dela que ardia em farpas, profundas
feridas que não fechavam nem com reza braba para santo forte.
Mas faltava pouco.
Agora faltava pouco para resolver o não resolvido.
Pedira e pedira e
pedira ao Sérgio que parasse de pegar outras mulheres. Ela servia, não servia?
Boa de carne nos lugares certo, boa de cozinha e de cama, sabia fazer um homem
feliz. Era vivida, criada entre vaqueiros na roça do pai, entendia das mazelas
por que passam as mulheres quando amam um homem só. E logo ela fora atingida
por essa doença de coração entupido de amor desleal. Logo ela que se achava
forte e pronta para desbancar qualquer um que a passasse para trás. Deixara
muito homem chorando nas cercas da vida. Dissera não quando até queria dizer
sim para mostrar quem mandava no coração dela. Não era mulher de fraquezas e
choradeiras. Nem de meias palavras. Era direta, firme, certeira. Até conhecer o
maldito que sabia mais do que ela sobre ela mesma. Infeliz da hora em deixara
aquele manco de quatro patas entrar em sua vida, sua cama, seus pensamentos.
Não chorava. Guardava cada gota de lágrima para depois. Depois da morte ela
acertaria o que precisava acertar. Ele haveria de sentir as consequências de
todo o empenho que tivera em pisotear o coração de uma mulher. Feito os
palhaços da arena, naqueles rodeios de tristeza, com suas lanças coloridas, a
espetar os pobres e miseráveis animais levados pela dor a mostrar a força que
os consumia. Quando Judite via a baba branca e gosmenta escorrer pelos cantos
da boca dos touros enraivecidos, açoitados, cutucados, empurrados para a luta,
ela sabia que dentro dela a quantidade de raiva era muito, muito maior, mais
densa, mais consistente, mais racional. Acumulava essa raiva com o cuidado de
quem guarda o que lhe é caro, com a certeza tranquila de que dependia dela, da
raiva, para manter-se em pé. Ela era um daqueles touros correndo pela arena.
Com a corda apertada na virilha para aumentar a dor que já se fazia
insuportável, só poderia avançar e avançar e avançar. Aprendera a avançar em
silêncio, sem ofegar, sem alterar o passo, sem apressar a voz, sem deixar uma
única gota de suor rolar pela testa elevada de mulher traída.
Ela estava lá dentro, na
arena, vivendo a mesma agonia do touro encurralado, carregando no lombo o peso
do vaqueiro fantasiado de homem. O touro recebia as esporas afiadas tantas
vezes quanto ela era açoitada pelo desamor do noivo "mulherengo".
Judite aprendia a
economizar a baba que fervia, tamanho o volume do sentimento e a lonjura do
tempo que a acumulavam entre os órgãos do corpo e do espírito, se é que alguma
coisa mais sutil poderia ainda sobreviver dentro dela. Sentia que chegava o
fim. A solução estava mais próxima de seus dedos, de suas entranhas entupidas,
de suas narinas dilatadas pela desesperança. A desgraça amar um homem infiel
era paga de outra vida. Só poderia ser.
Depois da morte,
Sérgio seria coberto pela ruína, pela força do mal que fizera, pelos vermes que
corroem as vísceras dos homens envergonhados, desonrados, culpados.
De um jeito ou de
outro, ele enfrentaria a conta volumosa da infidelidade. Não haveria descontos,
pois Judite pagara os encargos antecipadamente e em dobro, toda a vez que mais
uma vez se abria para receber o noivo manco no maculado leito de noiva cornuda,
traída, atraiçoada.
E lá ele deixava as
juras nunca lembradas ou cumpridas. Entre suas pernas, prometia amor fiel e
único, como se por dentro dela ecoasse a inverdade traiçoeira e tomasse forma
na vida desregrada que levava.
Judite não reclamava.
Ouvia os gemidos do noivo e acompanhava os desejos que deslizavam pelos
travesseiros quando cansado, Sérgio entregava os sonhos armados para logo mais.
Ele não dormia com
ela. Só deitava. Era o tempo de refazer-se para a próxima empreitada na casa de
"algumazinha" qualquer. Outra mulher ouviria seus roncos. E ela
jamais saberia qual delas detinha o poder de entrelaçar-se em suas pernas
peludas e arqueadas por uma noite inteira.
Sérgio dizia precisar
descansar. Ela o deixava acreditar que acreditava no cansaço e na ida para
casa.
Sérgio saía às
pressas. Judite saía atrás. Mas não ia até o fim, pois conhecia o caminho que
tomava em uma ou outra noite o noivo manco tomado pela luxúria das ofertas que
abundavam entre as mulheres sozinhas que o esperavam.
O dia chegara.
Armava-se na cidadezinha um grande e respeitado rodeio.
As ruas apinhadas de
turistas, de gente de fora, de perto, de longe, quase que marcavam um meio
sorriso nos lábios cerrados de Judite.
_ Mas quem lhe viu
ontem, não lhe vê hoje!
_ Qual o espanto,
Olga?
_ Ora, minha amiga!
Nunca a vi mais bem arrumada. E esse vestido? Não me contou que estava a
fazê-lo.
_ Levou muito tempo...
_ Ainda assim, não lhe vi à máquina!
_ Costurei aos
poucos...
_ E o pano!? Nunca vi
uma cor tão... tão branca!
_ É seda.
_ Seda? E o corte?
Ficou perfeito!
_ Fiz molde...
_ Lhe cai muito bem.
_ Fiz pregas- machos...
_ Eu vi. E das mais
difíceis, há de se dizer com certeza. Eixe só minha mãe ver essa beleza. Mas...
aonde vai com toda essa perfeição?
_ Ora, para onde você
vai também!
_ Vai assistir a
primeira prova?
_ Vou!
_ Não acredito! Você
detesta ver o Sérgio montar em...
_ Mas vou!
_ Hummmm! Então você vai
é se mostrar para o Sérgio... está certa! Está linda!
_ Não vou me mostrar
para ele.
_ Não!?
_ Vou cobrá-lo!
_ Ô Judite, não começa
com o que não dá para entender.
_ É simples... você
entenderá!
_ Judite...
Mais uma vez Judite não
ouviu as últimas palavras da amiga. Já se encaminhava por entre a multidão de
curiosos que passavam quase um por cima do outro.
Olga sentou logo na
frente, mas não encontrava a amiga no meio de todo aquele burburinho. O rodeio
era esperado durante o ano inteiro e durava mais de uma semana, o suficiente
para levantar dinheiro na cidadezinha, mas também para deixá-la de pernas para
o ar.
Guardava com o corpo
e o braço alongado um lugar para a amiga. Preocupava-se com Judite. Sabia de
toda a dor que a amiga carregava por dividir o noivo com a maior parte das
mulheres da vila, de fora da vila e... ainda mais agora... mulheres novas na
cidade, turistas, curiosas, carentes, descompromissadas. A semana seria um
suplício para Judite e ninguém conseguiria contar com quantas mulheres Sérgio
iria trepar. Mas faziam-se apostas em todas as esquinas. Era uma tradição
dentro do rodeio que fora tomando corpo com a mesma velocidade com que Sérgio
mostrava ter fogo e lábia para todas.
Não via Judite. Teria desistido de
assistir a abertura? Desistira de ver Sérgio entrar como a atração principal do
evento? Estaria mais perto da...
O barulho
ensurdecedor da música, dos gritos, das palmas e das falas do narrador
misturava-se fazendo qualquer um perder a clareza. Mas ela sabia para onde
olhar. E quando olhou, mesmo sem ver, entendeu!
Embaixo do touro
que Sérgio montava, o vestido branco da amiga tornara-se vivo como o sangue que
sai em jatos de seu corpo pisoteado.
Olga sentiu
náuseas! Uma tontura trazida junto com o silêncio das arquibancadas fez sua
cabeça pender para o lado. Ainda viu os palhaços correrem para o meio da arena.
Ainda viu um pedaço do tecido branco ser arrastado pelos chifres do touro
enraivecido. Ainda viu que Sérgio não conseguira controlar o animal.
Depois da morte
de Judite, a cidade parou.
Não foi
possível explicar o acontecido. Um infortúnio era a palavra que brotava nas
bocas entorpecidas pela cena terrível.
Mas o povo da
cidade sabia que de infortúnio nada tinha no fato. Ainda menos Olga, a amiga
que não entendera a tempo a solução que a amiga encontrara para cobrar suas
dívidas de amor.
E para espanto
da maioria, Sérgio dava-se por perdido. Além de manter-se dentro de todas as
garrafas de cachaça que encontrava pelo caminho, passara a vagar sem rumo pelas
noites quietas e ainda enlutadas da cidade dos rodeios. Caminhava arrastando as
pernas bêbadas como que se logo ali fosse encontrar a noiva a esperá-lo.
Gritava seu
nome batendo na porta errada. Se ali já deitara uma vez, agora, nenhuma cama o
receberia novamente, porque a culpa também faz parte da história das mulheres e
parece que elas se unem mais quando a desgraça se torna visível: a culpa e as
mulheres se dobram e desdobram sobre si próprias.
Quem agora dormiria com Sérgio?
Qual delas teria coragem de enfrentar o peso da parcela de culpa que
indiretamente lhes caberia pela loucura de Judite? Não que alguém pronunciasse
qualquer juízo de valor. Não! Julgar estava fora da alçada humana. Mas as
pessoas pensavam sem dizer, pensavam alto. E quando pensavam, deixavam
transparecer na linha dos olhos, da boca...
Durante muito
tempo Sérgio vagou chamando por Judite. Alguns chegaram a vê-lo de joelhos
diante do vazio a rogar por algo não ouvido, diante de ninguém visto. Dois
lugares que não exigiam muito esforço para serem preenchidos.
Os dias
sujos e alcoolizados levaram o vaqueiro ao descrédito total. Os dias sem começo
nem fim costumam apontar para um caminho sem volta, sem esquerda e direita, só
com uma linha reta aparecendo entre as duas sobrancelhas.
Ninguém
dizia "pobrezinho" do Sérgio. Nem mesmo aqueles que muitos trocados
ganharam nas apostas das esquinas em noite de folguedo frouxo. Nem mesmo os
companheiros de festa livre, nem os parentes, nem os amigos, ninguém. Ninguém
olhava para o homem que se consumia em culpa, remorso e saudade.
Apenas
Olga tivera coragem de juntá-lo em um dia de muita chuva, quando corria o risco
de morrer afogado na água barrenta avolumando-se na sarjeta.
A amiga
de Judite arrastara Sérgio para a varanda da casa ouvindo os protestos da mãe e
os xingamentos do pai.
_ Deixe
esse traste onde ele está!
_ Ele bem que merece o que passa.
__...
Enquanto
observava o homem sujo e alcoolizado, Olga poderia jurar ouvir Judite dizendo:
_ Depois
da morte tudo se resolve!
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