PALAVRAS MOLHADAS
FORA
DOS TRILHOS
- para além das pautas retóricas sobrevivem
melodias silenciosas -
"Falhamos ao traduzir exatamente o que
se sente na nossa alma: o pensamento continua a não poder medir-se com a
linguagem."
Henri Bergson
Grossas
raízes atravessam o umbral da porta. O que resta da esquadria de madeira pouco ou
nada marca a soleira carcomida. De longe, e com esforço, lembra uma ligeira
divisão entre o dentro e o fora. Na dialética dos conceitos arquitetônicos,
uma porta é mais do que uma porta: abertura para dois lados com tampa na
vertical - o básico! Abrir um espaço também exige fechá-lo. Passar por
nem sempre indica sair de, ou entrar em... detalhes trilham a
órbita dos espetáculos abertos ao público e das palavras transitivas:
transitórias, temporárias. Palavras e portas têm raízes fantasmas e tempo
marcado pelo uso, no uso: abuso?
À sombra da velha abertura, alguns discursos
trafegam descalços. Os sujeitos deles, envergam neles, trajes especiais. Envergam-se. Andam e
permanecem, empertigados e afoitos, feito loucos diante do ostracismo inglório
da vida pré-datada.
Uma porta jaz no caminho da
incompletude deixando a poesia obesa de possibilidades, quente de falsidades:
caminho duplo têm mão estrangeira, beirada de ferro e placa em sentido único. Um
jerico não é penico, afogado em grito, povo convicto sobrevive da agricultura
sazonal. Palavras soltas fazem chuva, regam a luva: temporal! Sorte de quem logra ao longo do
campo plantar a semente e colher frases. Sempre frases no final.
À sombra
das laranjeiras nascem portas, nascem tortas sobre os trilhos do trem. Há quem
vem, há quem vai : faz-se doce o apito da sílaba - contrai! contrai! E de
sílaba em sílaba, o ritmo da música diz mais, muito mais.
Grossas
raízes vagam dispersas pelos umbrais. Bêbados pelos discursos audíveis, homens
e mulheres tomam canja em botica de pardal. Perdem as pernas na correria do
verbo, secam a língua nas conversas afiadas, batem em retirada quando a beleza
do dia não pede mais nada! Nada! Beleza não exibe complemento. A contento,
diz-se que não prescinde da razão de quem tenta, indelével descrição. Descrever
é falar ao meio, sem meneio da verdade, ou com medo da vaidade, refuta conclusão.
Quem vê com olhos de sentimento sempre aumenta o desvio da ilusão, pontifica a
fraude do tempo e inventa uma versão. Inventar é criar raízes, plantar palavras
no chão, podar a crosta árida na vertigem da emoção. Emoção é cabo de guerra,
salve-se a Terra, lenta esfera, da isenção.
Pelas
rasgadas portas do verbo, gramaticam-se ordens, flexionam-se lordes, lavras
do dito, contrito, alugam-se dons.
Dom ou senhor à cata em breve ata se mantém; prole fina, aproxima e rege, na
gramática do pejo, o amor de alguém. Amar é sublinhar o texto, sem pretexto,
muito além...
"Ainda existem almas para as quais
o amor é o contato de duas poesias, a fusão de dois devaneios."
Gaston Bachelard
Texto: Ivane Laurete Perotti