CONTO: BARCO À VELA

CONTO:
                    BARCO À VELA                       
                                                                                                 

                                   Pela borda esquerda da tela envelhecida saltava a ponta de uma corda. Ponta desfiada pelo uso; os nós desfeitos apagavam as linhas do antigo contorno. Intangível estava ela, a corda pendente para fora do quadro como se uma língua de fogo brando lambesse o outro lado da realidade. Um quadro sobre a cômoda empoeirada. Do tampo de madeira apontavam os bicos do guardanapo branco feito de bilros, antiga técnica de bruxaria em laço e linha tramada por mãos de intenções puídas. Puídas eram as lembranças que a corda esticava por sobre o lado esquerdo do barco. A vela em riste mantinha a altivez da antiga nobreza e estufava-se com o vento que soprava da terra para o mar. O sol dava notas de seu fascínio e lambia suavemente o dorso das ondas salgadas. Erguiam-se respingos pelo espaço em óleo e nada mais se via além do barco tremeluzindo ao sabor do próprio destino. Barco à vela, barco movido pelo desejo livre de cortar a água vidracenta.
                                   No quadro, a corda encobria a ilusão de uma figura ativa. Alguém segurava o leme. Alguém protagonizava o desejo de ir e ir e ir. Esquerda e direita. À bombordo e à estibordo. A cana do leme dançava movida por mãos invisíveis. Mãos que poderiam estar em qualquer lugar naquele momento. Mãos de alguém que tomara posse de sua vida destituída de tramas e dramas. Sem dramas, sem quadros recortados para a eternidade dos momentos simples. Sem tramas para servir de consolo diante da corda que espreitava pela borda do velho quadro.
                                   Os bilros gastos nas pontas do guardanapo denunciavam o tempo de comiseração. Tempo que se desfazia no trajeto das espumas carregadas pelo mar. Espumas infantis acariciavam a praia. Carícias fugazes, rápidas, traiçoeiras. Chegavam com intensidade diferente, sempre a gosto e mando dele, o senhor das profundezas abissais. As mesmas espumas que cortavam as lembranças construídas em castelos de areia e pedras movediças. Movera-se pela vida desfiando as contas indevidas. Só o barco acompanhava com sofreguidão os inconfessáveis desejos de navegar sem rumo. O barco e aquela figura que era um e outro à medida que os anos amadureciam sua vontade. Nenhum rosto em particular. Muitos rostos sem nome. Outros nomes cujos rostos não desejava lembrar.
                                   O sol pendia sobre as ondas e não reclamava mais espaço: tinha-o por seu em total dependência. O mar e o firmamento beijavam-se na ponta do barco que cruzava a linha traçada pelas cores refletidas. Beijavam-se exalando o gosto da travessura.  Roubavam-lhe os beijos jamais tidos. Beijavam-se diante dela em cúmplice harmonia. Elisa mordia os dedos nervosos. Os lábios, cansados de esperar pelo derradeiro momento da vitória partiam-se em desigual alinhamento. Finos, secos, contritos. Lábios quebrados pelas lufadas que estufavam a vela. Pálidos lábios diante do barco que cortava o vento empinando a proa. Da popa para a proa o barco à vela perdia peso. Subia em direção ao vácuo dos beijos intermináveis. Mordiscava o céu e afagava o mar. A poesia não velejava sozinha. Elisa embalava o corpo magro nas ondas contorcendo-se em igual sinfonia. Subia o peito arfante. Balançava os braços em torno do corpo empertigado. Pernas fletidas. Olhos pregados no horizonte contínuo. Cabelos enroscando-se no rosto suado.
                                   O barco seguia cortando o mar. Marolas beliscavam o casco e roubavam um sorriso reto dos lábios de Elisa. Pequenas marolas formavam espuma que ela via subir em forma de bolhas translúcidas. Um canudinho soprando a água salgada. Um canudinho para a festa vazia de outros rostos. Bolinhas subiam em diferentes tamanhos pela borda do barco e alojavam-se no colo de Elisa. Outro sorriso em linha aberta.
                                   Um nome apagava-se na lateral do barco. Um nome que ela jamais conseguira ler. Era um nome feminino, poderia jurar. Mas não o lia, apenas via suas letras apagando-se ao longe como se guardassem um segredo para sempre inconfesso. Barcos carregam segredos, independente das dimensões de seu casco. Todos os barcos são construídos a partir de segredos e vontades que fermentam as mãos que lhes dão forma. Mãos grandes e poderosas estabelecem medidas, cortam madeira, costuram as velas, apoderam-se dos mastros nus. Mastros sem velas permanecem nus e frios como se lhes faltasse a roupa a cobrir o corpo. Ou as partes. As vergonhas. Elisa cedia ao peso das imagens que fluíam e sentia-se enrubescer diante delas. Barcos à vela são poderosos. Perigosos, inevitavelmente perigosos.
                                   Uma onda maior ameaça sair dos limites do quadro. Tomba por sobre a tela espreitando estourar fora dela. É uma onda surpresa, densa, escura, surge das profundezas oceano e ameaça o frágil barco. Elisa recolhe-se ao seguro lugar de sua cadeira. Assustada, ofegante, arrependida, volta as mãos frias para a vela que segura. Cândida vela feita de cera quente, amarelada pelo tempo de manipulação, arranhada pelas horas de medo e agonia. Vela sem pavio. Intocada pelo fogo que ardia dentro dela e esperava o momento oportuno para fazer-se crescer em chama longilínea. Uma cruz invisível atravessa-a do alto da cabeça ao peito passando de um ombro a outro. Elisa sabe que foi longe demais. Longe demais. O barco a impele. Empurra. Desestabiliza. Sucumbe diante do que não vê e acredita estar à frente, sempre à frente. Haveria uma praia, ou uma ilha, ou simplesmente a vastidão do oceano. Ondas maiores subiriam em concha diante dos olhos do marinheiro sem face. O barco deslizaria sobre elas sem se deixar engolir. Era assim com os barcos à vela: indigestos. Faziam-se indigestos para a gulodice do oceano faminto e traiçoeiro. Em praias desertas alguém estaria esperando. Esperando o barco atracar suavemente. As pegadas na areia mostrariam os passos ligados pelo abraço dos dois corpos molhados. Sumiriam em direção às rochas aconchegantes. Rolariam juntos diante do sol embevecido. Espiariam o barco quieto, silencioso que aguardaria sem reclamar o momento de voltar. Voltar era uma obrigação. Ou não! Quando duas vontades somam uma vontade, a vontade formada pelas duas é mais forte. Pode subir as rochas aconchegantes e plantar-se onde bem desejar. Pode carregar o barco à vela para a areia seca e enrolar a vela com cuidado de especialista. Basta ser uma vontade clara e vinda da soma de outra vontade. Assim se fazem histórias sem surpresas onde os finais felizes começam no início e escondem-se no fundo dos barcos feitos à mão. Conhecia muitas delas e outras tantas que grudara nas partes secas do quadro. O mar não sabia guardar segredo. Vomitava em ondas a verdade das histórias feitas das vontades somadas. O mar sentia ciúme dos barcos que navegavam com velas e nomes apagados. Espumava. Agitava-se. Sabia reconhecer a fúria do mar ciumento. Temia sua força iracunda. Elisa cuidava para esconder seus desejos de mulher em lugares inalcançáveis. Só o barco conhecia os caminhos de suas vontades singulares. Vontades que aguardavam a hora de somar-se a outras vontades.
                                   Uma corrente de ar frio, despido de boas maneiras, invade o quarto. O mar ouvira seus pensamentos. Arrepia-se. Encolhe-se. A coluna verga-se sob o peso do medo involuntário. Treme. Agarra-se à vela de cera entre os dedos apertados. Dedos magros, quase esqueléticos. Dedos de menina doente. Dedos de Elisa.
                                    Da cômoda, o barco à vela espia a triste cena. Solta a corda que prende o mastro e sinaliza para a menina sentada na cadeira de rodas. A menina que passa os dias de sua vida diante dele, dia após dia, ano após ano, envelhecendo sozinha em frente ao quadro pintado a óleo.
                                   A cômoda gasta adquire proporções sombrias. Apagam-se as espumas formadas pelos vômitos do mar. As marolas murcham, as ondas cessam a dança; lambem-se chorosas diante da dor que penetra o quarto escuro. A proa do barco dobra-se  tangida pelo abismo que agora a separa da velha menina.
                                   Elisa recolhe-se ao casulo que a envolve. Lentamente, seus olhos desbotam-se e escondem a vida por trás deles.
                                   Nas mãos, espasmos retêm a cera da vela antiga. Vela sem pavio. Apagada e lisa, vela amarelada pelo tempo.
                                   A corda pende acabrunhada para fora do quadro. A ponta desfiada balança no silêncio que encobre Elisa.
                                   O barco à vela interrompe o curso. Só o tempo dirá sobre sua próxima viagem. Sem Elisa, o mar perde a força e os limites da grande obra recolhem-se como sinos tombados.
                                   Elisa não sabe, mas sua vontade soma-se a muitas vontades e na lua certa, a maré invadirá seu quarto outra vez mais, empurrando-a para fora e para cima. Na lua certa.
                                  
                                    

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