CONTO: EM FOGO BAIXO
CONTO
EM
FOGO BAIXO
As tiras
escuras desprendiam-se caprichosamente do corpo carnudo. Avolumavam-se sobre o
mármore branco em cadência ritmada. O corte fino, de medidas exatas, ia e vinha
sulcando a travessia da faca afiada. De baixo para cima. Da parte mais fina
para a parte mais grossa. Recheava a mão que a sustentava com delicada leveza.
A casca arroxeada deitava-se aos pares expondo o interior verde acinzentado.
Verde caminho para a lâmina livre.
Amarilda retirava a casca leguminosa sem
alterar o seu formato alongado. Exímia cozinheira entrava dia e saía noite no
preparo das berinjelas. Assadas, escaldas, marinadas, levemente refogadas. Era
uma arte cozinhar para os quatro homens de sua família. Marido e filhos exigiam
dela mais do que se poderia esperar. Fazer o quê? Cumpriam com o que
determinava a lei das grandes famílias e a ela cabia dar conta de atendê-los de
forma vistosa. Vistosa sim, porque não queria que seu esforço passasse
despercebido aos olhos daqueles homens exigentes. Aprendera com a mãe de sua
mãe que toda mulher deve sacrificar-se, e ao fazê-lo, deve assegurar-se de que
o sacrifício fique bem visível. Visível, mas nunca, nunca audível. Reclamar
jamais. Fazer por ser vista sim, mostrar-se sem deixar que se comprovasse sua
estratégia também. Importante obedecer a tais ensinamentos. Garantia-se o
equilíbrio do casamento e da família. Fazia bem ao estômago e ao coração, além
de peculiar economia.
A cada dia, Amarilda esmerava-se como se fosse
o último de sua vida de sessenta anos gastos à beira do fogão à lenha. Dever de
mulher é sagrado e está escrito que se há de encher o bucho dos seus até vê-los
enfastiarem-se pela repetição da delícia ofertada. Ela cozinhava bem e sabia
disso. Cozinhava desde muito pequena. Mal alcançava o fogão, aprendera a usar a
colher de pau com o cabo corroído pelo manuseio de outras mãos. Mãos femininas.
Mãos torneadas a mel, óleo, canela, açúcar, farinha de todos os tipos,
fermentos inventados, folhas colhidas em canteiros preparados perto da janela
da cozinha. Mãos que recebiam os filhos do útero disponível e se lhes
ofereciam, elas próprias, pelo resto dos dias de todos os dias. Crescera uma
menina prendada. Mas a especiaria era um sinal da fartura que reinava em sua
casa bem provida. O marido era um criador de cavalos de raça: fazia riqueza com
facilidade. Prerrogativa que não lhe indicava esbanjar na cozinha. Nunca!
Cozinha, lugar sagrado, facilmente se transforma em escoadouro das moedas
juntadas a suor e calos. Não era exatamente o caso de seu marido que, suor,
pouco vertia e calos, suas mãos eram substituídas pelos inúmeros peões que lhe
faziam o trabalho pesado. Era um homem alto e bem apessoado. Bonito,
acreditava, com certo cuidado em expressar suas opiniões. Nada deve ultrapassar
o limite do bom senso, nem mesmo um mimo como esse de deixar a descoberto que
admirava a pele clara do marido, as sardas avermelhadas que lhe cobriam o
torso, as pernas bem feitas, os pelos do peito e... era uma mulher comedida.
Poderia se dizer tal acerca de tudo o que lhe dizia respeito. Era comedida nos
gastos, nos temperos, nos arroubos de carinho, nos dengos a distribuir com
parcimônia entre os quatro homens aos quais servia.
Diante do
fogo aceso, Amarilda divagou pelas memórias que guardava. Histórias de família,
boas ou más, devem estar a salvo de formigas e camundongos. As primeiras são atraídas
pelo doce aroma das coisas boas; as segundas, independente do quanto tragam de
tragédia e dor, atraem os roedores mais do que qualquer sabugo de milho seco. A
vida humana era um grande paiol onde deveriam ficar em separado os
acontecimentos comuns. Assim Amarilda classificava e catalogava as memórias
mais caras e até as que gostaria fossem roídas até o caroço pela rataiada, ratada,
rataria, ninhada de ratos vorazmente esfomeados. Sua vida moderadamente
comedida e econômica tivera episódios amargos feito fel de galinha choca. O
fogo puxava essas lembranças que ficavam tampadas e na parte mais distante de
seu paiol pessoal, mas as labaredas ardentes lhe fizera mergulhar na noite em
que encontrara seu robusto marido deitado com a ajudante dos serviços domésticos.
Nada dissera. Não reclamara. Suas lágrimas de dor e rejeição foram colocadas
uma a uma nas colheres que durante dias inteiros afundavam em geleias, doces e
compotas. Não havia fruta que chegasse. Não havia lenha suficiente para
alimentar o fogo do fogão aceso. Não havia medida para as lágrimas que
derramara sozinha sobre a chapa quente do fogão. O marido, como que sabedor de
seus direitos destacados de garanhão da família, não pedira desculpas, não
fizera menção de falar sobre o assunto, não se mostrara contrariado, pesaroso
ou com remorsos maritais. Remorsos. Esse era um sentimento que ela não via
despontar nos quatro homens da casa. Talvez o do meio, mais sensível, mas
certamente já recolocado sem eu lugar pela voz firme do pai. Era assim. O fogo
lambia as feridas que estavam mais próximas, mas também garantia que nenhuma
delas virasse um cancro fatal. Estava de bom tamanho.
Das
berinjelas lavadas de pouco escorria a água retirada do poço. Poço aberto em
uma vertente antiga, descoberta pelo pai de seu pai. Limpa. Água pura e fresca,
assim como já quase não se encontrava mais.
Ela mesma esticava a corda e mergulhava o balde recolhido com a força da
manivela. Manivela de metal pesado e cabo de madeira grossa. Manivela que
puxara a água para os primeiros banhos de seus filhos, para encher os jarros
que levava para o quarto de dormir de cada um deles antes que fechassem a porta
para ela. Não aceitara as modernidades da vida em sua cozinha. Lá não. Bem que
insistiram a tempo e no tempo em que canalizaram água para as cocheiras. Aceitara
a custo abrir mãos de sua vontade para a comodidade dos banheiros. Esses sim
faziam jus ao gasto com os metros e metros de canos que traziam água de outra
vertente. Era um desperdício, mas lhe custara um tempo a menos na lida e um
cadinho a mais de horas à beira de suas panelas. Pois exemplo tivera o
suficiente para não contratar nenhuma ajudante a mais depois que aquela dita
partira ela própria, movida pela vergonhosa vergonha do pecado cometido.
Preferia suar até a sola do pé do que aceitar outrazinha dentro de casa. Esse
não foi um assunto discutido. Passou batido para todos os outros a falta da
ajudante. Mas ela sabia onde ardiam suas costas depois de limpar a casa
inteira, lavar as roupas pesadas e passar a ferro as camisas de gola dura.
Ainda assim, melhor a dor nas costas do que a dor nos cornos, dor de cornos,
dor de chifres, nos chifres e nas guampas. Era direta. Com ela mesma não havia
lengalenga. Aranzel era coisa para mulher fraca, sem educação que vinha de berço
e de geração para geração.
As berinjelas
secavam ao ar livre para manterem o gosto e as propriedades intocadas. Era
capaz de aguardar ao lado delas para proteger-lhes a saúde e a limpeza.
Berinjelas, santos legumes colhidos da horta que mantinha a custo nos últimos
tempos. Um pouco pela terra fraca, outro pouco pelas ardências nas ancas
envelhecidas. Mas ninguém lhe ouviria dizer qualquer palavra. Até o final de
sua vida estaria ali, fazendo o prato principal daquela família de homens
fortes. Berinjelas inventavam-se em horas para todos os gostos. Harmonizava com
a carne de boi que o marido trazia ainda cedo, amanteigava com o pão que o
filho mais novo preferia comer de pronto, recém-assado no forno de barro;
bastava para o filho mais velho quando esse decidia empanturrar-se com ovo
frito e queijo derretido em leite de cabra. Servia sempre para o do meio que
comia o que lhe servissem. As berinjelas coroavam a sua vida, amaciavam as
mazelas naturais das passagens que todas, todas, todas as mulheres precisam
atravessar. As berinjelas nasciam sob o empenho de suas mãos e ainda elas
separavam-lhe a casca amarga. Amarga, mas não de todo desprezada. Haveria de se
saber passar a fina lâmina entre aquela pele que a recobria e a carne que lhe
recheava o corpo. Legume fácil de plantar, rápida para cozer.
Amarilda
tinha uma receita guardada a muitas tampas e lacres no mais profundo de seus
conhecimentos culinários: berinjela à telha. Era uma suculência que alimentava
os olhos e a boca deixava afogando-se em desejo aguado. Quem tinha lombrigas
passava longe desse prato se não lhe fosse permitido devorá-lo por inteiro.
Muitas comadres embarrigadas lhe pediam em estado de piedade que lhe passassem
a receita. Qual o quê. Amarilda se colocava a fazer uma telha atrás da outra
para satisfazer os desejos das grávidas suas vizinhas. Mulher pejada era mulher
em estado de aflição. Não seria ela a deixar uma comadre na mão, ou melhor, sem
a berinjela feita em telha de tijolo envelhecido, escorrendo aquele azeite
virgem colocado depois. Não! Ela não tinha estômago para tamanha maldade. Fazia
berinjelas até a vizinha botar o rebento para fora, ou enquanto durasse o
desejo das ditas, pois isso de estar embarrigada era uma coisa por demais
delicada. Dizia sua mãe, em tempos de grande sabedoria que, quando as vacas
estavam prenhes, deitavam pular a cerca em sinal de agonia. Conhecimento
inquestionável. Fazia ela as vontades das mulheres que lhe pediam a berinjela
na telha. Mas a receita não. Essa não fazia parte do desejo nem que dele se
fizesse uma questão de vida e morte. Isso não.
A cozinha de
Amarilda lembrava uma antiga arena. Dispunha-se em um círculo quase perfeito e
possuía aberturas por todos os lados. Aberturas para os outros, para ela, eram
apenas lugares de passagem para chegar ao poço, para alcançar os temperos, para
jogar as cascas das berinjelas no espaço da forragem, pois melhor adubo não
havia do que aquele feito com as próprias cascas dos legumes. Era assim que
facilitava a batalha de cozinhar e cozinhar e cozinhar. Baseada nesse princípio
entendera que, a água encanada nos banheiros da casa lhe daria mais tempo com a
barriga encostada no fogão. Que viesse a água. Que viesse! Mas que não
invadissem os limites de sua cozinha impecavelmente limpa e funcionando a contento
de todos.
Uma passagem
estranha se dava na vida de Amarilda. Sabia ela do gosto de seus homens para a
comida farta, mas jamais lhes ouvira tecer elogios acerca de um prato ou outro.
Eles comiam e comiam bem. Então, comedida e conhecedora de seu lugar, entendia
que a rapidez com que o prato desaparecia do centro da mesa era suficiente para
amaciar o ego e indicar a sua vitória sobre as demais iguarias.
Amarilda
convivia há tanto tempo com as berinjelas que passara a desenvolver um
conhecimento incomum sobre as leguminosas. Sabia sem o menor erro o tempo de
crescimento das plantas, da explosão dos brotos, da floração e por aí afora.
Cronometrava e nominava cada nova leva que separava em canteiros devidamente
marcados com a data do plantio. Dava-se ao trabalho de conversar com as plantas
mais fracas para motivar seu crescimento e produção.
Os sessenta e
nove anos de Amarilda passaram despercebidos para todos. Sem grandes dores para
ela, não seria a primeira vez que a data de seu nascimento mergulhava em
esquecimento. Mas estranhou dessa vez que, à mesa do jantar, pela primeira vez
ouvia seus quatro homens trocarem conversas entre si. E dizia o mais novo:
"A mamãe se foi já faz um ano e eu ainda sinto aquele cheiro enjoativo das
berinjelas sobre o fogão." O comentário era emendado pelos outros que até
faziam ares de enjoo controlado à menção do conhecido legume. Um atrás do outro
disse de si o que nunca lhe falaram.
Amarilda não
vira a luz no final do túnel. Não lhe falaram sobre túneis durante seus quase
setenta anos. Então? Então cozinhara em vão todas aquelas berinjelas? Fizera-se
especialista em um prato que lhe deixara oblonga, oblonga, oval e esverdeada?
Acometida de
todo o furor que pode atar-se aos seres apanhados em suas próprias armadilhas,
Amarilda prometeu a si mesma que continuaria ali, naquela cozinha, fazendo
berinjelas atrás de berinjelas, na esperança de que o cheiro delas penetrasse,
impregnasse cada um deles. Não descansaria, a não ser que a tal luz do final
túnel adentrasse por uma daquelas aberturas e lhe tomasse de susto, como lhe
tomavam as cores aqueles quatro marmanjos sentados à mesa sem um único prato de
berinjela.
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