ENTRE A PAIXÃO E A LOUCURA... um conto:
ÁRVORE DO DESTINO
Feito aquele amor que nasce quando as folhas
do outono estão caindo e um misto de coisa nova e história antiga se misturam
embriagando os olhos dos que varrem o chão com a alma descabida de rumo e de
sumo, Lineu avistou um colorido diferente na estradinha que levava à escola. Na
primeira olhada, pensou ser uma "visage" de início de tarde, quando o
sol ainda atravessa a terra com a parte mais alta de sua coroa. Apertou os
olhos pequenos para ver melhor, mas o colorido teimava em se aproximar do caminho
que ele também tomara. Lineu conhecia aquela cor, mas não os movimentos
ondulantes que se aproximavam em cadência musical. Sentiu um aperto bom esmagar
o seu estômago enquanto um calafrio fazia os seus testículos enrugarem-se
intimidados.
_ Êta! Ferro! Que... que...
O que seria aquela
"ondulância" esvoaçante que ainda tinha dois olhos, uma boca carnuda
feito coração de pomba e um... um nariz de... um nariz de..
_ Boas tardes!
E falava!
_ Bas... bas... tarde!
Certamente ela não ouvira o cumprimento
cuspido com esforço de gago cego, de perneta medroso, de filho de uma égua
embasbacado. Mugira! Mugira algumas sílabas para aquela deusa dos além.
_ Bas... bas... bas... o que ela vai pensar
de mim!? Ai! Pelamordedeuso!
Lineu, acostumado na convivência com as poucas
moças do vilarejo, moças essas que eram primas dele em algum grau, encontrava-se
despreparado para aquela formosidade andante. E, que andar o quê! A moça
flutuava sobre as pedras do caminho, nem encostava no chão os seus pés de...
de...
_ Êêê! Só podia sê "visage"... tô
prego! Tô prego na alma do coisa ruim que mandou me atentá! Ê!
Entre assegurar-se
que aquelas "curvulências" todas ainda se mostravam pelo caminho
aberto e benzer-se em cruz três vezes para cada lado, Lineu titubeou indo e
voltando a cabeça para ver mais um pouquinho!
_ Assanhado! Te
arrecolhe, primo!
_ Pri...
prim...prima!? Qué me enterrá vivo?
_ Vivo você tá inté
demais! Vira esses... esses buraco que parecem duas brasa prá cá! Tu tá pegando
fogo, meu primo! Acarme a carne! Ela não é para o teu bico!
_ Voc... voc... você
também viu?
_ Tá gago além de
timbé, primo. Tu tá variano ou tirano uma cas minhas fuça?
_ Fuça? Que fuça,
Donizete? E eu não tô timbé não, minha cabeça tá muito da boa.
_ Dá prá vê!
_ Vê o quê?
_ Tua cabeça, Lineu! Tua cabeça!
_ Mas é
claro! Carrego ela aqui nos ombro faiz
tempo. Mas... você tamém viu?
_ Depende!
_ Você viu aquela formosidade de curvulâncias
arredondadas prá mais de... viu?
_ Eu vi uma moça muito jeitosa passando por
aqui!
_ Êêê!!!
_ Baxa o teu isquero que ela não tá oferecendo
palha prá dobrá.
_ Eu... eu...
_ Eu, eu, eu! Desempaca, primo! Tu é homi
da roça, mas não é bocó!
_
Eu... eu...
_ Ai! Agonia! Vô me indo. Depois tu me
alcança, se quisé, né!
Demorou
até Lineu dar conta de voltar para o lugar onde estava e retomar o
caminho. E ia para onde? Ai, a vida cheia de astúcia surpreendia homem
despreparado! Ai! Que descuido! Passara a moça e perdera a companhia da prima.
E ia para onde?
Aquele instante
superior em sua pacata vida de roceiro promissor fez estragos profundos.
Arremessou-o contra as plantações em preparo, fazendo-o rodopiar feito pião de
louco. De lá Lineu não sabe quando saiu,
se saiu. Deu-se o direito de imaginar e imaginando deu-se todo a tudo. Viveu o
momento luxuriante do aroma de noz moscada que grudara em seu pescoço, ouvia e
ouvia outra vez a voz que aumentara as palavras para além do cumprimento. A mulher
de sua vida viera até ele e se entregara feito flor de maracujá. Abrira-se para
que ele pudesse vê-la todinha e pelo tempo que desejasse o desejo de tê-la ali,
grudada em cada pelo de seu dorso desnudo. A plantação foi regada pelo mais
doce perfume fundido pelas duas almas em fogo de carne, em fogo de espírito, em
fogo de sangue quente de homem saudável e mulher preparada.
Lineu saboreava aquela
mulher de cima a baixo com a língua inchada pelo sabor doce que molhava a alma
faminta.
O sol veio e gostou daquela
festa de gente grande e convidou a lua para espiar. Tímida e amarela, a noiva
da noite argumentou estar em quarto minguante e recolheu-se para não desejar
olhar. Estrelas fizeram chuvas ao redor da plantação. Quem registrou o fenômeno
vindo do céu certificou-se das profecias finais. Deveriam ser boas, porque
estrelas não caem sem pedidos de fortuna e muita saúde. A mesma saúde que Lineu
esbanjava nas partes da mulher, sua mulher agora, mulher dele, só dele e para
ele.
A mulher que Lineu esperara por tanto tempo
corria leve e livre fazendo com que a
pegasse antes de encontrá-la. Escondia-se e o chamava a encontrá-la pronta,
aberta para receber o seu peso e o seu amor. Queria mais, e mais e mais! O
milharal deitava deliberadamente diante da força daquele fogo preparado só para
ele em tantas noites de solidão casta. O chão cobria-se com os dois corpos
entrelaçados, subindo e descendo junto com os movimentos que saíam encadeados,
estrepitosos, coloridos pelas vozes embebidas em prazer puro.
Outra estrela caiu em chuvas
abundantes sobre o milharal.
As pequenas gotas quentes e brilhantes rolavam
livres pela terra amassada pelos pés de Lineu e...
Uma delas foi se
esgueirando para muito, muito perto do pé chato de Lineu. A ânsia da pequena
gota de luz acendeu algum lugar na semiconsciência daquele corpo de homem
insaciável. Dor? Calor? Foi o suficiente para clarear o caminho interrompido e
ainda não sabido. A quantas ia a hora? Onde fora a mulher... onde estava aquela
que... porque ela o deixara ali, tremendo, molhado de suor ?! Que voltasse!
Nunca mais a deixaria partir. Nunca mais!
_ Primo? Ô primo! Tá
todo mundo procurando você! Cadê suas roupa, primo?! Primo?
Despido de todo o juízo, Lineu
não se deixou encaminhar de boa vontade. Eis que para mais da metade da família
acorreu para tirá-lo do meio da plantação de milho que implorava socorro. Não!
Era a voz de sua mulher amada pedindo que a deixasse ficar! Era ela dizendo que
não o deixaria sair sem que fosse junto com ele, para onde quer que fosse, iria
junto para sempre. Era o destino dos dois agora feito um só! Cadê ela?
_ O primo tá variano das
ideia. Temo que levá ele para casa antes que faça mais estrago na plantação.
_ Com quem ele tá
falando?
_ Não sei, ele tava aqui
sozinho quando eu cheguei.
_ Será que alguém fez
malvadeza com ele?
_ ...
_ E inda tá cos
documento tudo de fora!
_ Se fosse só de fora...
tá em pé!
_ O primo é bem
abençoado...
_ Chega! Abençoado ou
não a gente precisa tirá ele daqui!
Lineu foi levado à força
para a sua casa. Com a ajuda dos que se apresentaram, deram-lhe um banho de
alecrim com mastruz e o colocaram para dormir. Quem sabe se uma noite de sono
não o deixasse novinho em folha? Ou em roupas, pelo menos, porque o estrago
entre as primas alvissareiras estava feito. Não se falava de outra coisa! O
tamanho dos documentos de Lineu caiu nas graças das mulheres que já cogitavam
os graus de parentesco que os distanciava.
Na manhã que recebeu
Lineu um pouco mais calmo, o café foi tomado rapidamente, sem qualquer
comentário sobre a noite que se sucedera.
_ Fio? Tu vai trabaiá com teu pai lá na casa
da tia?
_ Com o pai? Não mãe! Eu tenho um encontro e
não posso falta. Inté! Bênça!
_ Be... bênça.... fio!?
Lineu?
Lineu não ouviu a
confirmação da bênção. Tocava o espaço que o levaria a encontrar a sua amada
outra vez! Ela voltaria para encontrá-lo ali, onde os dois amarraram as suas
vidas para todo o sempre.
Encostado na frondosa
figueira que ladeava o caminho que levava à escola Lineu a viu chegando. Outra
cor, ainda mais luminosa do que antes. Os mesmos passos, o mesmo cheiro de noz
moscada ralada na hora, a mesma boca...
_ Boas tardes!
_ B... bas... bas...
Pela segunda vez Lineu
foi tirado do meio do milharal já em estado de rendição. Por culpa e obra suada
das boas línguas, muitas primas acorreram para saber do primo.
_ Viemo ajudá!
_ Ele tá tendo alucinação no milharal outra
vez?
_ É? Peladinho como a tia o recebeu?
_ Que primo abençoado!
_ Aff! Inté parece que Deus exagerô!
_ Que desperdiço... esse milharar não é um bom
lugar para...
_ Tomem tento, meninas! Quando um homem perde
o juízo, quarqué lugar é lugar.
Uma semana inteira se
passou com o corre e acode o Lineu no milharal. Uma semana de muita notícia no
vilarejo que nada tinha para contar. Mas notícia mora em pé de vento brabo e
das redondezas apareceram outras primas de Lineu, muitas esquecidas do digno
parentesco. Todas se colocavam para ajudar e olhar.
_ Êita! Que coisa das
mais maraviosa...
_ Nunca vi inguar!
_ Deve de sê encantamento
da lua...
_ Deu vontade!
_ Sabia
que o pobrezinho ainda não... não...
_ Quem
disse?
_ Os primo, ara!
_ Tão
enciumado! Da mesma famia e com tanta diferença.
_ E
não é?
_ Me
contaram que o irmão menor é ainda mais abençoado.
_
Impossível! Impossível! Esse é um retrato de artista!
Lineu
foi levado para a cidade e por lá ficou uma semana com um tal médico do sono.
_ Fez dormir, fez?
_ Foi o que a prima contou!
_ Tadinho! Com tanta saúde...
_
Vai entendê!
Ninguém
entendeu o silêncio com que trouxeram o moço de volta. Quieto e pálido,
mostrava ter emagrecido, olhar de quem estava em outro lugar.
O médico receitara
muito descanso e bons passeios pelos arredores da cidade, a fim de que Lineu
recuperasse a sanidade. Coisa de moço novo. Nada que merecesse muito cuidado.
Com os dias vingando
entre o quarto e o quintal, Lineu aceitou estender um pouco mais os passos para
além da casa.
Nas primeiras vezes, foi acompanhado por
primas e primas que se enfileiravam para ajudá-lo. Bem que o pobrezinho
precisava de cuidados assim, uma conversa sempre é melhor do que uma consulta
na cidade. Custava caro, ninguém entendia o que o médico queria saber. Era tudo
coisa muito simples aquela vidinha de trabalhar a terra e viver com o que as
mãos levantavam.
Ninguém por ali carecia de nada, só Lineu que
por força do desconhecido mudara a rotina do lugar.
Que
esperassem! As primas mais antigas conheciam rezas de desencantamento. Lineu
seria curado daquela desmazela de se enfiar peladão para dentro do milharal.
Mas se havia uma pergunta que ninguém conseguia responder era quando e o que
começara essa desavença na cabeça do moço tão bom e saudável.
Com o tempo, Lineu
parecia ter esquecido o acometido e mesmo ainda muito calado, trabalhava com o
pai na lavoura. E no final do dia, lá estava ele encostado no tronco da
figueira, como a esperar por alguém que nunca viria.
Às vezes, era preciso que a mãe mandasse o
irmão menor chamar para a janta posta.
Lineu obedecia. Quieto e sem muita fome,
comia o que lhe colocassem no prato.
_ Você falou com o novo vizinho, Bastião?
_
Falei, mulé!
_ Por cortesia, precisamo chamá eles aqui prá
uma boia.
_ É... vô chama!
_ Me contaram que a Dona Moça tem jeito da
cidade.
_ É... inté parece! É uma belezura e munto
inducada! Você ainda não a viu, Lineu?
Lineu não ouviu a pergunta e nem o rumo da
conversa na cozinha depois do jantar.
_ Bastião... mas e se ela for luxurenta? Nóis
somo tudo munto simpres! Será que...
_ Eu
vô convidá os dois, muié. São recém-casado e tamém tão ganhando a vida na
terra. Há de se entendê...
_ Tá bão! Então convida eles prá manhã di
noiti, qui vô fazê um pato assado na canela.
_ Bão... bão...
O pato foi preparado de véspera, como manda
o manual das cozinheiras que nunca leram uma receita, mas conhecem todos os
segredos para agradar uma boa boca.
Casa limpa. Roupa trocada! Lineu foi avisado
da novidade, mas cumpriu com o ritual de sentar ao pé da figueira.
Na chegada da visita, casal novo e bem
apessoado, a mãe de Lineu, encantada pela graça da nova vizinha e preocupada em
agradar, só lembrou-se de mandar chamar o filho na hora em que servia a mesa.
Estavam todos à mesa quando o rapaz entrou.
A primeira voz que ele ouviu foi:
_ Boas noite!
E mergulhou para dentro do milharal levando a
frente todos os pés carregados de espigas gordas.
Do susto para o incômodo do feito diante de
visitas tão educadas, o pai de Lineu torceu o assunto para que deixassem o
menino para lá. Logo, logo estaria de volta pedindo desculpas pela falta de
educação.
_ O médico falô num tar de
"istréisse". A gente da roça nunca ouviu falá dessas coisa de hoje,
mas é só uma questã de tempo.
O pato estava dos
deuses, o molho era um milagre e pelo resto da janta rasgaram-se tantos elogios
à comida de Dona Tina que a hora passou sem avisar.
Os vizinhos foram embora para mais do que
satisfeitos. E o seu Sebastião, homem simples e de sorriso fácil, era só
gratidão pelo esforço da mulher em tratar tão bem os novos vizinhos. Aliás, era
essa a lei da roça. Um precisava do outro e haveria de se saber disso desde
cedo, fazendo amizades para uma vida inteira.
Com o sono merecido daqueles que alcançam seus
objetivos, os pais de Lineu só souberam que ele não dormira em casa pela manhã.
Foi a prima da prima de Lineu que encontrou o
moço.
_ O quê?
_ Mas... como... ele...
_ Isso mesmo que a prima ouviu. Lineu subiu na
figuera e peladinho peladinho, deu um nó de forca para ninguém desamarrá.
_ Jesus, Maria e José!
_ O que será do Bastião e da Tina?
_ Tão lá os dois, chorano a alma que tá
ardida de dor .
_ Dá um
dó...
_ E o
médico?
_ Não chamaram o médico. Ele já tava durinho,
durinho...
_ Mas...
_
É o "instréisse" prima, é o "instréisse".
_
Deus acuda! Deus acuda! Rapaiz tão... tão...
_ É... tão!...tão...
_ … tão abençoado!
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