ABLEPSIA
AOS
QUE OLHAM A VIDA DE DENTRO PARA FORA
“Há
pensamentos que são orações. Há momentos nos
quais, seja qual for a posição do corpo, a
alma está de
joelhos.”
Victor Hugo
As mãos em concha
simulavam a noite diante dos olhos. Os dedos apertados um contra o outro criavam
a ilusão da luz rarefeita. Ele sorria enquanto mostrava à criança curiosa a
vantagem de aprender a olhar para dentro.
Dentro
era um lugar que ficava distante do universo imediato de um ser em tão puerícia
idade. Mas o neto insistia em aprender a ver
como o avô via, ou deixava de ver. E na
tarde que se entregava aos abraços do sol, os dois partilhavam a mesma
experiência, cada qual assentado ao banco de sua própria compreensão. Dois
meninos em agudo crescimento: avô e neto dividiam a vida em parcelas degustáveis.
O primeiro conhecia as dificuldades retratadas; o segundo desejava conhecê-las.
Diferenças mínimas, mas suficientemente sugestivas para quem quer que tentasse
entender aquela parceria.
Crescia o silêncio na sala
grande. Atento às orientações do avô, o menino respirava em uníssono, sem
retirar as mãozinhas de frente ao rosto. Juntos, perscrutavam o caminho ao
alcance dos olhos fechados. A escuridão ilude os navegantes, especialmente se
apenas dela se valerem. E não há risco maior do que acreditar piamente no quadro
que as vistas recortam. Muitos sinais
se perdem na extensa faixa que intermedeia os olhos físicos e sua capacidade de
ler o mundo.
Ver é uma
faculdade quase independente, um sentido interligado ao espírito bem mais do
que ao corpo, mas a cultura do materialismo imediato nos afasta das
potencialidades postas. Relegada ao plano do esquecimento, esta capacidade
fenece com o tempo, o costume, a rotina, e passamos a acreditar que o ato de ver implica a presença de globos
oculares. Não implica! Tanto quanto enxergar e ver inscrevem-se na lexicologia com raízes semânticas diferentes,
apesar do parentesco e do sentido comum ao ponto de referenciação. Qual dos
dois verbos expõe nossa estultice diante do óbvio? Eu enxergo, já não vejo! Eu
vejo, mas não enxergo! Questões que só podem vingar em mentes abertas para a
vida enquanto equação sem perímetro, sem fronteiras axiológicas, sem as mesmices
que se traduzem em comportamentos automatizados.
O
menino com idade avançada sabia que a ablepsia alcançava o corpo, sabia! Tanto
quanto entendia que ela poderia nascer na alma e jamais ser diagnosticada pela
medicina clínica. Mas, sabia ele também que, ao aprender a olhar de dentro para
fora, via sem deixar de ver e sentia mais do que via sem ver.
Era o que ensinava
ao neto. No silêncio criado e na ilusão do escuro imposto pelas mãos em concha,
os dois perscrutavam os sentidos menos sentidos. Viam as cores da vida
assumirem sabores, cheiros e texturas inegavelmente belas e presentes. Tocavam
a borda do céu sem sair do lugar; exploravam o universo interno prontos para
vencer os monstros da intimidade aguçada. Os dois meninos dançavam a valsa do
conhecimento travado no âmago de sua fonte primordial: o eu mesmo! O inviolável self!
Deslizar pelas
fronteiras do inevitável é uma prática dos espíritos livres e maduros. Mergulhar
na aceitação do imprevisível é tarefa hercúlea. Nem uma e nem outra impossíveis
aos homens de boa vontade e ampla inteligência.
Na tarde abraçada
pelo sol, avô e neto avançavam pelo caminho da visão imaculada: os dois viam!
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